domingo, 31 de agosto de 2014

A POETA SABE

A poeta rubricou seu beijo
No desejo da minha pele aflita.
Minha pele memorizou os lábios,
A saliva, a leve encostada
Do esmalte dos dentes.
O beijo é a performance da boca
No palco da pele alheia.
A boca é para falar, comer,
E beijar é sua desfunção.
Na desfunção é onde estão
A beleza e o prazer.
A poeta beija sabendo disto. 

EPIFANIA

Caminhar no deserto
E encontrar Deus.
Descobrir mais um tanto
De leite condensado
Na geladeira.

VENENO

Uma mulher
Com cheiro de febre
É construída pela luz
Que invade meu quarto.
A luz sua um pouco.
Sua dádiva é um sol
Ardendo meus nervos
Com suavidade.
Carícia febril.
Nervuras de folha
Atiçam as narinas
De minha memória.
Toda felicidade
É um veneno
Que brilha,
Um veneno
Que mata
Com a claridade
Do dia.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

POSSESSO

Meu demônio
Recicla seus sonhos
Em minha mente.
Abro a boca
E dentro dela
Ele fabrica
O atalho do Inferno.
Meu demônio dança
Em meu corpo
Como se a lua
Pedisse um amante.
Ele predisse
Em meu ouvido
Minha morte,
Mas me enganou.
Ele alucina
Meu cheiro,
Distorce meus sentidos.
Ele me pede
Para escrever um poema
Para ele.


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

PERFORMER

Você performatiza seu gênero,
Seu sexo, sua politização,
Seu papel social, sua função
No trabalho, seu poema.
Você vai assistir a uma performance
Para se deparar com a realidade
Que você não percebe
No seio da realidade.

A VOZ DO FOGO

O povo ria.
Começou com poucos,
E depois todos riram
Até se levarem
À extinção.
O povo que ria
Fazia guerra tribal
Com outro povo
Que se extinguiu.
Que se extinguiu
De tanto dançar.
O povo que ria
Era canibal
E gostava de mostrar
Os dentes sujos
De sangue
Às próximas vítimas.
Os que dançavam,
Por sua vez,
Matavam através de ritual
Sacro-erótico.
Se ouvir o fogo,
Ele contará outras histórias.

COMOÇÃO

Senhor dos lírios do campo,
Há um brilho acampado
Em seu coração.
Não há espinhos no jardim?
A pradaria em seus olhos
Reflete como pedraria.
O tempo solsticia em seu flanco
Como o sol no verão.
Uma chusma de imagens sacras
Calcina o horizonte
Com dantesca precisão.
Uma chuva torrencial se inicia
E logo termina.
O Senhor dos lírios do campo
Caminha molhado,
Inundado de uma comoção
Que o horizonte prometeu explicar,
Mas não explicou.


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

CAMINHADA NOTURNA

O balé do brilho
Na convulsão do olho afoito.
Fito um pouco aflito
O brilho bailarino
No palco da noite.
O olhar libertino do gato.
A adaga da prata
Dos cílios enquanto cicia
O desejo no vento.
Mas de quem tanto o desejo
Aventado?
Seu vulto voga
Como o amor virtual,
Como se a noite
Sequestrasse uma bailarina
Que não quer
Parar de dançar.
Pulo um muro.
Tem passagem de terra
O local.
Por motivos que um poema só
Não conseguiria decifrar,
Sempre misturei
Cheiro de terra úmida
Com cheiro de mulher.
Nesta noite,
Quero me embrenhar no caminho
E voltar somente ao amanhecer. 

domingo, 24 de agosto de 2014

FUNÇÃO POÉTICA

De toda minha
Parafernália parafílica
O que sobra, o que fica,
O que a conforma e a transcende
É a poesia e sua matéria: palavra.
Cada palavra está presa
Como uma presa em uma jaula.
Uma gesticula para a outra,
Como mulheres forjando
Uma performance
Sem poder se desvencilhar
De amarras com nós especiais.
Quando se soltam,
É porque o poema está frouxo
E o teatro não estimula mais.

sábado, 23 de agosto de 2014

SACRIFICIAL

Que a poesia me destrua.
Que faça comigo um ritual
E devore minha carne,
Beba meu sangue.
E que depois ela,
Feiticeira desta e de outra era,
Me faça renascer,
Pela cabeça que sobrou,
Da terra, como se plantada
Uma semente.
Que a poesia me destrua,
Me renove e me alimente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A RODA

O headbanger bangueia
E salta no mosh.
O amigo grita antes
Em seu ouvido
Que queria dar um bang
E já voltava.
Para o headbanger
Não há volta.
Ele saltou no mosh.
Não é mais ninguém:
Ele é a roda.
E a música que a boca
Da roda devora.

O CONVITE

Lusco-fúcsio, o findo dia
Programa sua bruxaria.
Os elementos são títeres
Que a noite irá recompor.
A imaginação criadora
Da noite convida o poeta,
Que se despersonaliza.
Dispersa despersona,
Uma alquimia do verbo
Reverbera no coração escuro
Das florestas de folhas
E de concreto.
A fantasia confisca
Os detalhes,
Como uma ditadora
Ditando a liberdade.
Tudo recomposto,
Tudo parece natural.

AQUELES QUE NÃO OUVIAM A MÚSICA

A dança macabra de Liszt
Atrapalha a lenda de Wagner
Que ouço lendo Nietzsche.
E a versão da dança que soa e fica
É a de Maksim Mrvica,
Na qual há mistura com música eletrônica.
Agora é a rabugice
Do Übermensch
Que cria uma realidade dialógica
Batendo em minha cabeça
Como Bakhtin lendo Dostoiévski,
Ou Wittgenstein articulando
Suas investigações filosóficas,
Ou ainda como o boom do discurso
Durée do Bloom de Joyce
(Mas aí estaríamos, talvez,
Além da dialogia).
Nietzsche impreca por minha atenção,
Mas é porque desta vez
Era ele quem não ouvia a música. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

INTRANSIGÊNCIA

Meu pelo absorve
O apelo do absurdo.
A estética da crueldade
Ritma meus gestos
E o piscar de meus olhos.
Minha mente vibra
Ao toque dos guizos
De uma víbora.
Um ub sunt surdo
Paira sobre os prédios
Da urbe da minha solimultitude.
Estranho ub sunt:
Não uma sensação imberbe,
Porém também não barbada.
Só a sensação nostálgica
Da própria morte
Que ainda não veio.
E que seja leve e breve
Quando vier
Para arrepiar meus cabelos
Como as rebarbas
Das carícias de uma mulher
Que entende como amor
Aniquilar quem se depara
Com sua intransigente sorte. 

À PAISANA

O olhar lesiona
O desenho da silhueta
Situada no sutil
Local da distância.
O olhar resenha
A distância,
Que se inflama, infla,
Diminui e infecciona.
O olhar cria
A paisagem,
Sempre à paisana.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DUCKFACER

Encantadora de serpentes,
Não há veneno que a afaste.
Encantadora de elefantes,
Eleva sua vaidosa fronte
Na frente dos gigantes.
Encantadora de homens,
Salomitando na passarela urbana,
Desvia suave dos transeuntes, dos postes.
Ou então, quando não na rua,
Ou quando a rua muito cheia
(E flanar não possa),
Ataca com selfies em todos os posts.


CONSPIRATÓRIO

Quando acordo,
Penso que farei a Revolução:
Me envolverei politicamente
E unirei o proletariado,
Que retomará sua consciência de classe.
Conforme vou despertando
E o dia vai passando,
Penso que farei a revolução:
Irei até um empório,
Misturarei doce com salgado
E depois lerei um livro de poesia
Em plena praça pública.

FEMME FATALE

Um louva-a-deus
Louva a Deus.
Depois treina kung fu.
Não importa:
A fêmea vai devorá-lo
Após acasalar.
Aqui quem se fode
É o macho.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

AFRODISÍACO

Macarrão à putanesca.

SEM TÍTULO (ATÉ O POLTERGEIST)

Até o poltergeist
Postergou sua vinda.
Postergar
É o novo zeitgeist

domingo, 17 de agosto de 2014

MANÁ

Você desperta com seu deus no brilho dos olhos
E na gosma amanhecida do céu da boca.
A pasta de dente tem seu deus.
Você o pressiona entre seus religiosos dentes.
O deus no pão que você come
E no café que bebe
Reivindica de manhã orações no estômago,
Depois no intestino e na privada.
Você trabalha e seu deus
É seu secretário, e o papel
Que você rasga e joga
Acertando o lixo como um jogador
De basquete norte-americano.
Há seu deus na escritura,
Que se mata e rejuvenesce.
Quando dormir,
Terá de dormir com seu deus.
Solitário violador estelar e cotidiano,
Violará o templo de seu deus nesta noite?
É seu deus o monstro
Acorrentado no pé de sua cama,
Pedindo um pouco de ração e água
No corpo de uma mulher de três metros?
O que há debaixo da máscara de couro
Do seu deus?


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

UMA NOITE

Escôndita lua,
Há um lírio em sua boca
De tímida prostituta?
O litígio dos cães na rua
Me assusta
Através do látego do latido
Ardido que caçoa
Do meu passo medroso.
Quanto, por uma noite,
Você cobra, lua? 

A ESCONDIDA

Meus dedos
Penteiam o fogo selvagem.
Vertiginam o fogo.
O fazem sangrar.
Uma cabeça de fogo
Engana a noite
Fingindo ser o nascer do sol.
Meus dedos
Chamam a chama.
A pele arde luz.
O discurso fosfóreo
Do fogo acende
O desejo da noite.
A noite é uma mulher alegre
Tendo um orgasmo escondido
Em nome da preservação
Da imagem
De seu eterno luto.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

ALVORADA

Um pássaro pia.
Modaliza os sons.
A claridade acústica
De sua boca
Cria uma imagem
Que contrasta
Com a penumbra exterior.
A boca do pássaro
É como a pedra:
Guardiã do fogo.
O mito continua voando.
O bico perfura o tempo.
Pia o dia pio.

MÃOS

A mão do roceiro,
A aspereza do seu trabalho,
Marca a memória da mão
Que a segura.
Às vezes chega ao ponto
Da mão que a segura estranhar
A própria superfície lisa.
A mão do roceiro
Ensina à outra mão
Que um mero toque da pele
Já revela uma vida diferente. 

PEDIDO

Se eu carpi, Carpinejar,
A defeituosa flecha
De Cupido,
Foi em grande parte
Das vezes, confesso,
Irônico meu pesar.
É bom poeta,
Assim como o pai Nejar.
Seja menos profeta
De menina
Que nem o lê,
Mas não para
De para você chorar. 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

TENTAÇÃO

Elas vestidas como nazista.
Eu, judeu e comunista.
Um aposento, câmara de gás.
O gás, dos corpos delas,
Plenos de Luftal.
Acordo excitado e assustado.
Na cabeceira, leituras
De Hitler, Sade e Marx.
Não as misturo mais.
Ou então talvez mais uma vez.
Mais uma vez não fará mal.

UM BOM GOLE

Pisca prisca
Na íris da memória
Uma estrela.
Estala mudo
O florescimento
De uma rosa
Em um safaresco
Recôndito da memória.
Um califado
De sensações distantes
Reassume o poder
Através de um golpe.
Que cornija sustenta o céu
Desta memória,
Que às vezes dura
Como ouro fluido
Tomando as margens
De assalto?
De onde o brilho
Tão brocado?
Hoje, por um momento,
Bebi embriagado
O não mais tantálico ouro.