terça-feira, 27 de agosto de 2013

AS MATILHAS

Cães perseguem uma cadela no cio.
Alguns dizem não ser correto imaginar violência nisto.
Dizem que a violência é dos homens.
Mas a primeira mãe dos homens é a natureza.
A civilização é a fuga da violência desta mãe
Para que se possam exercer outras espécies de violência
Mais elaboradas e explicáveis
Mais através da figura do pai (papai para Deleuze)
Do que da mãe, se se acredita em Freud.
Assisto a um gangbang
E penso no que carrega mais violência:
Isto ou o ataque canino?
(Neste momento também passa um filme com gangue de bang [bang).
Então leio “A Matilha”, de Teófilo Dias,
E todas estas espécies de violência me perseguem pela poesia;
E ela me revela uma verdade que não responde claramente
Minhas questões, mas ressoa de modo enigmático
Como se então eu já soubesse algo,
Algo importante que antes não sabia.

domingo, 25 de agosto de 2013

PÂNICO E DEVOÇÃO

Assisto a uma panicat
Lambendo comida nos pés de uma anã.
Um corpo de elite lambendo
Um corpo marginalizado
Em nome de um único freak show.
Corpos marginalizados, corpos de elite...
Vejo a fotografia de uma mulher
Com consequências de poliomielite
E também de uma mulher amputada.
Alguns sempre imputam a denominação “puta”
Para qualquer corpo em exposição,
Mas e quando o corpo é deformação?
A anã se sente mal, mas a panicat se sente pior.
O corpo marginalizado humilha
O corpo de elite ao se humilhar.
Então o corpo da panicat deixa extravasar
Seu lado freak, se torna mutante,
Agencia na devoção forçada
Sua musculatura dúbia que oscila
Entre o feminino e o masculino
E seu asco se acentua pela rouquidão da voz.
A panicat e a anã
Fizeram seu ritual de devoção,
E o terrível devoteísmo que poderia
Advir das fotografias
É completamente subjugado.
Eu também, aqui, fiquei exposto.
Meu corpo é o mesmo após?  

domingo, 18 de agosto de 2013

Ela anda nas ruas desempregada,
Desrumada e desarrumada,
Não há nada que seus pés não passem,
Vê a cidade com olhos panópticos
Que buscam uma espécie imprecisa
De liberdade, de paz,
Mas há sempre a saudade
Que assola uma rua passada,
Que soluça em uma calçada,
Que calça o luto de um momento
Impercebido que não volta,
Mas a ausência de retorno
É a mesma que possibilita a corrupção
De uma coisa em outra
E que promove outra visão
De uma coisa e de outra,
Espreita e espectra a cidade
Em seu panorama e detalhes,
Fuma a maconha que da cidade emana,
Inala a cocaína que a cidade evade,
Invade o sentimento
Na indiferença das coisas,
Saboreia a vertigem da razão
Das coisas em sua ausência de função,
O fardo é andar,
A cidade é um templo
E sua religião não é percebida,
Ela anda como se respirasse,
Busca o amor nas ruas,
O ódio, a liberdade, a paz,
Ela sofre quando a cidade acorda,
Há prazer neste sofrimento,
É preciso andar até a morte.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O SANGUE DA MEMÓRIA

O perfume nostálgico da mulher que amei
Se mistura com o odor ácido e enjoado
Da urina que monopoliza a sugestão olfativa
Daquela esquina mal iluminada.
Esta mistura suscita, de modo inesperado,
Um novo agenciamento na memória
E o nojo invade minha sensação de amor.
Tento purificar minha memória
Indo até uma praça para que o odor
De folhas úmidas aguce
Uma nova ilha de sensações.
Há sangue em algumas folhas mortas:
Houve briga, e bem violenta.
O odor do sangue ativa a sensação dúbia
De sofrimento e nascimento.
Minha memória sofre e renasce,
E assim minhas lembranças sofridas
São ao mesmo tempo lúdicas,
São crianças que viveram bastante,
E o tempo as fez, neste momento,
Mais infantis em sua seriedade.

domingo, 11 de agosto de 2013

SEM TÍTULO (UMA CRIANÇA ESCAPOU DA DEEP WEB,)

Uma criança escapou da Deep Web
Ensanguentada e chorando...
O que farei agora que ela me apareceu
E necessito protegê-la?
A levarei a uma empresa de fast food
Para que ela possa recuperar
O lado bom da vida?
Acenderei, com meu ateísmo,
As centelhas da religião
Para que ela possa recuperar
O sentido da vida?
Seu violador vestia batina
E máscara de palhaço.
Como fazê-la crer?
Como fazê-la crer que este outro palhaço
É do bem mundial
E a batina pode salvar sua alma?
Que o palhaço e o padre
Lhe apresentarão, ao invés do deepthroat,
Uma deep Truth?
E como fazê-la crer na realidade poética,
Muitas vezes desgastada,
Dos jogos de palavra
Para que ela possa recuperar
A possibilidade de brincar?

domingo, 4 de agosto de 2013

Às vezes observo a água escorrendo
Da torneira, do chuveiro.
Às vezes até um vulto que lembra
A silhueta de Pessanha
Passa, pelo filtro da água, como imagem
Que não se fixa na retina.
Talvez seja esta a peçonha
Da serpente cristalina:
Não fixar as imagens em sua liquidez,
Em seu devir fluido.
A imagem vaga do amor,
Que pode tomar qualquer forma,
Também passa;
A imagem mais liquefeita,
Mais afeita ao líquido,
À fluidez deste devir desde sempre.
Meu suor se mistura a este fluido
E ao amor...
O amor é líquido,
Mas já acreditaram que a vida é líquida...
O amor é vida, Hilda?
Qual o estado do amor?

sábado, 3 de agosto de 2013

Sou um animal,
Ou há um animal devorando minhas vísceras
E sua cabeça surgirá
No pó das ruínas de minhas costelas.
Racionalizo isto
E habito isto no discurso
Com a frieza de quem tem consciência
De que ser um animal
É se saber um animal e o representar.
Porém esta razão é também temor,
Há medo na razão:
Sou um animal que com colher e faca
Come sua ração.
Meu discurso se teme,
Há temor e tremor no coração
Do discurso maquiado de conceitos.
Sou um animal sagrado, ritualístico,
Habitado no discurso,
Esclarecido e obscurecido na razão.
A razão de tudo isto também é obscura.
E tudo isto sei com a confiança de saber
E com o temor de não saber,
O temor de que a cabeça do animal
Destrua minhas costelas.
A cerimônia do sexo,
O ato da alimentação,
O encontro com a multidão
Me dão confiança e medo, fé e temor.
Sou um homem de fé perturbada,
Um homem fera,
Sentindo que a biologia vocifera
E que minha consciência
Se fortalece perante um ataque
Do meu lobo, da minha matilha.
A existência exige, então, uma estética,
Uma ética que também é ékstasis.
O homem fera é homem arte,
Cultua sua cultura,
Tem consciência disto perante
A própria inconsciência em alerta
E pensa, crê, teme, treme, ama... fala.
Falo mesmo no discurso que meu lobo cala.
Banho o suor nos meus pelos...  

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

FARDO

Uma Salomé aprende a dançar na multidão.
Recostado a um café devasso,
Devasso seu olhar como um Herodes contemporâneo,
E meu ridículo cesário me permite
Articular mentalmente espécies de odes de Eros
A esta figura estéril (de seis filhos).
Salomé histórica traída pela própria história,
Se transforma em uma Eva pandórica.
Agórica, seu ínsulo e perfeito olhar se insulamita agora
Em algum outro mito com a imediatez de um insulto brusco
Como se, fescênia, procurasse um fator etrusco
Que confrontasse e metamorfoseasse tradições.    
É insulado, porém sibarita no olhar
Chispas que regam seu regaço,
Mas com um ar indolente insuflado
Que, de inflado, faz com que se amoleça
Como o creme do doce que, doce e meiga, experimenta.
Começa então a nadar na multidão como Nadja.
Como a realização do método crítico-paranóico,
Meu olhar a partir dali simultaneia
Helena de Tróia, Vênus, Diana, Herodíades...
Anadiómena, homenageia uma flor
Fazendo concha com as palmas das mãos.
Sente o fardo da mitologia,
Sente o fardo do meu olhar.
Se sente mulher, se vê mulher. Chora...
Depois para de chorar.
Lide com a presença de seu deus morto. Sinta seu deus escorrendo do interior de seu corpo, o corpo podre de seu deus infeccionando a saúde de seu corpo. Deixe-o sair para ver a luz; ele quer ver a luz com seus próprios olhos sem luz. Abra seus poros como portões do templo. Defeque seu deus, o urine, o vomite. Seu deus é polimorfo e colorido, apesar de apodrecido. Alimente seu deus com alimentos fast food sem remuneração de trabalho extra. Seu deus é gosma. Seu deus morto escorre aos poucos. Seu deus morto nunca morre de todo. Está em seu interior, apodrecendo e te apodrecendo. Você o ama a seu modo.