segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O BOLO

- Querida, já cheguei ao ponto definitivo de te amar da forma como entendo o grande amor, o amor com o qual eu sonho – confessou à mulher, dolorido, despertando-a de um sonho incompleto às duas horas da madrugada. Seus olhos aturdidos, semiobservando as rugas da testa algo transtornadas do marido, não conciliaram com as palavras ditas com certo tom de fatalidade enrustida, desesperada, o que acabou por não atingir, nos olhos dela, o efeito pretendido, revelando, ainda nos mesmos olhos, uma sensação de estranhamento advindo também da sonolência, mas prioritariamente da incompreensão momentânea de certas expressões utilizadas pelo marido. Mas logo se revitalizou sua compreensão. Decifrou o enigma, que de tempos em tempos, durante todo o período de casada, reassombrou os diálogos, as carícias, as promessas futuras.
- Digamos, querido, que cheguei ao ponto de considerar com bastante carinho – respondeu lacônica, porém com laivos de delicadeza afetiva. Só não apresse o percurso de algo que nem nós às vezes temos a certeza de compreender tão claramente - finalizou.
Os olhos dele conciliaram com as palavras ditas. Suas rugas retrocederam o esgar.
No café da manhã ambos se alimentaram com gestos compartilhados; um sorriso tímido instigava outro. A paixão pelos gumes, o deslizar da faca no pão (uma faca para cada um, diversa uma da outra), as típicas preliminares da margarina e da geléia antes de se levar algo à boca pronta para, com mil martelos e serras, aniquilar, ou melhor, tornar sagrada a coisa enviada ao estômago, fixavam-se nas retinas e no pensamento de ambos. Por um momento, ele sentiu como se o estômago e a língua de sua mulher estivessem adquirindo vida própria. O estômago brincava de forma sutil, ronronando, remexendo-se um pouco, salivando como uma criança recebendo doce. Uma pequena criança docemente devoradora. A língua odaliscava um pouco, em tom provocativo. Dançava com o abdômen lubrificado de margarina, liso e evidente, em circunvoluções perceptíveis para um homem somente, um Herodes particularizado, em um trono parecido com a cadeira de uma mesa de cozinha.
Beijou a odalisca anã e se dirigiu ao local de trabalho: o açougue. Lá, cortou as carnes com um sentimento renovado. Nunca os nervos foram tão ramificados, o sangue tão rubro, os ossos tão inseguros. Recordou, com avidez afetiva, um dia em que sua mulher se feriu fazendo a unha. Feriu o dedo de modo muito suave, mas o suficiente para ele mimá-la com preparativos de assepsia, cuidados de esparadrapo e beijos... Nunca o sangue tão rubro.
Porque ela ainda não lhe tinha desejado as felicitações (era seu aniversário), ao invés de se ter magoado, suspeitou que lhe iria proporcionar alguma surpresa, como em alguns aniversários anteriores. Fingia que se esquecia do dia especial e preparava de antemão um delicioso bolo e/ou guloseimas várias. Ao chegar em casa extenuado, mas extasiado sem saber muito bem por que, uma comoção ainda mais singular assaltou seu organismo, aumentando a excitação. Encontrou em cima da mesa da sala de estar o maior bolo de chocolate que vira em vida, repleto de cerejas estufadas e muito vermelhas. Sua mulher surgiu do corredor com as mãos para trás com o sorriso tão apetitoso e com os lábios tão acerejados quanto o bolo. A comoção dele também reverberou em um largo e satisfeito sorriso, enquanto ambos olhavam fixamente para a vela que representava o número um dos seus recém-feitos quarenta e um anos.
Do lado do bolo, o cutelo ansiava por cortá-lo em mil fatias.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Era ator. Seu nome – Estêves – era mais uma máscara; sua identidade era cambiante, à margem de todos os câmbios. Abastado... de cabelos e de aparições, soltas como os cabelos. Aparecia, às vezes como aparição mesmo. Aparecer passou a ser uma forma de existência. Nunca ser, sempre estar; naturalizar (ou não) o estado de processo, o processo do inacabado, o percurso do incompleto. Ser – expressão por demais complexa – parecia-lhe muito pouco mutável. Onde estava o ser? O ser precisava aparecer. E aparecer era a melhor forma de estar. E ele esteve vida afora. Esteve engraxate, ainda estando criança; esteve mecânico, já estando maior; esteve pequeno empresário, já estando um pouco maior; esteve falido, estando novamente menor. Acordava (ora em uma cama ora debaixo de jornais) e se assustava às vezes com a mutação no espelho (ora inteiro ora despedaçado). Nem sempre havia tempo de laboratório para a mutação de cada dia, mas logo acompanhava a peça e adquiria mais experiência. Esteve em circo: palhaço oficial da sociedade industrial. Esteve em mal caminho, pois é difícil andar reto em esquinas tortas. Por fim, um grande diretor abriu vagas para interpretar um anjo. Ele se inscreveu sem titubear. Ganhou o papel. Ninguém assistiu, mas esteve em sua mais comovente e convincente performance.