quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

De onde a paixão do detalhe? Que orienta certo Oriente? Que prodigaliza e rebaixa certa ninfeta? É questão de detalhe toda morbidez, é priápica a perscrutação de sardenta tez, isto é, de sardas uma de cada vez, e de preciosismo de pedras, tecidos, estilos, com torcicolo ou com estilete?, filete de luz, réstia de azul, resto de alimento no canto do prato? De onde o súbito parto das pequenas coisas, que se avolumam, outorgam soberanas o domínio da atenção, a lente do foco, assoberbando como uma infecção, metástase in loco, rebanho, tropel, enxame, exame de pontos, vírus, bactéria, icário ácaro, cárie na ponta da língua, ou melhor, ponta da língua na cárie (e não importa o tamanho do caralho?)? Unha infantil no canto da pia, na extremidade do vaso sanitário, mosca em teia de aranha no último caule da última planta do orquidário? É de semente em semente que o solo sente que assume o poder.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O BOLO

- Querida, já cheguei ao ponto definitivo de te amar da forma como entendo o grande amor, o amor com o qual eu sonho – confessou à mulher, dolorido, despertando-a de um sonho incompleto às duas horas da madrugada. Seus olhos aturdidos, semiobservando as rugas da testa algo transtornadas do marido, não conciliaram com as palavras ditas com certo tom de fatalidade enrustida, desesperada, o que acabou por não atingir, nos olhos dela, o efeito pretendido, revelando, ainda nos mesmos olhos, uma sensação de estranhamento advindo também da sonolência, mas prioritariamente da incompreensão momentânea de certas expressões utilizadas pelo marido. Mas logo se revitalizou sua compreensão. Decifrou o enigma, que de tempos em tempos, durante todo o período de casada, reassombrou os diálogos, as carícias, as promessas futuras.
- Digamos, querido, que cheguei ao ponto de considerar com bastante carinho – respondeu lacônica, porém com laivos de delicadeza afetiva. Só não apresse o percurso de algo que nem nós às vezes temos a certeza de compreender tão claramente - finalizou.
Os olhos dele conciliaram com as palavras ditas. Suas rugas retrocederam o esgar.
No café da manhã ambos se alimentaram com gestos compartilhados; um sorriso tímido instigava outro. A paixão pelos gumes, o deslizar da faca no pão (uma faca para cada um, diversa uma da outra), as típicas preliminares da margarina e da geléia antes de se levar algo à boca pronta para, com mil martelos e serras, aniquilar, ou melhor, tornar sagrada a coisa enviada ao estômago, fixavam-se nas retinas e no pensamento de ambos. Por um momento, ele sentiu como se o estômago e a língua de sua mulher estivessem adquirindo vida própria. O estômago brincava de forma sutil, ronronando, remexendo-se um pouco, salivando como uma criança recebendo doce. Uma pequena criança docemente devoradora. A língua odaliscava um pouco, em tom provocativo. Dançava com o abdômen lubrificado de margarina, liso e evidente, em circunvoluções perceptíveis para um homem somente, um Herodes particularizado, em um trono parecido com a cadeira de uma mesa de cozinha.
Beijou a odalisca anã e se dirigiu ao local de trabalho: o açougue. Lá, cortou as carnes com um sentimento renovado. Nunca os nervos foram tão ramificados, o sangue tão rubro, os ossos tão inseguros. Recordou, com avidez afetiva, um dia em que sua mulher se feriu fazendo a unha. Feriu o dedo de modo muito suave, mas o suficiente para ele mimá-la com preparativos de assepsia, cuidados de esparadrapo e beijos... Nunca o sangue tão rubro.
Porque ela ainda não lhe tinha desejado as felicitações (era seu aniversário), ao invés de se ter magoado, suspeitou que lhe iria proporcionar alguma surpresa, como em alguns aniversários anteriores. Fingia que se esquecia do dia especial e preparava de antemão um delicioso bolo e/ou guloseimas várias. Ao chegar em casa extenuado, mas extasiado sem saber muito bem por que, uma comoção ainda mais singular assaltou seu organismo, aumentando a excitação. Encontrou em cima da mesa da sala de estar o maior bolo de chocolate que vira em vida, repleto de cerejas estufadas e muito vermelhas. Sua mulher surgiu do corredor com as mãos para trás com o sorriso tão apetitoso e com os lábios tão acerejados quanto o bolo. A comoção dele também reverberou em um largo e satisfeito sorriso, enquanto ambos olhavam fixamente para a vela que representava o número um dos seus recém-feitos quarenta e um anos.
Do lado do bolo, o cutelo ansiava por cortá-lo em mil fatias.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Era ator. Seu nome – Estêves – era mais uma máscara; sua identidade era cambiante, à margem de todos os câmbios. Abastado... de cabelos e de aparições, soltas como os cabelos. Aparecia, às vezes como aparição mesmo. Aparecer passou a ser uma forma de existência. Nunca ser, sempre estar; naturalizar (ou não) o estado de processo, o processo do inacabado, o percurso do incompleto. Ser – expressão por demais complexa – parecia-lhe muito pouco mutável. Onde estava o ser? O ser precisava aparecer. E aparecer era a melhor forma de estar. E ele esteve vida afora. Esteve engraxate, ainda estando criança; esteve mecânico, já estando maior; esteve pequeno empresário, já estando um pouco maior; esteve falido, estando novamente menor. Acordava (ora em uma cama ora debaixo de jornais) e se assustava às vezes com a mutação no espelho (ora inteiro ora despedaçado). Nem sempre havia tempo de laboratório para a mutação de cada dia, mas logo acompanhava a peça e adquiria mais experiência. Esteve em circo: palhaço oficial da sociedade industrial. Esteve em mal caminho, pois é difícil andar reto em esquinas tortas. Por fim, um grande diretor abriu vagas para interpretar um anjo. Ele se inscreveu sem titubear. Ganhou o papel. Ninguém assistiu, mas esteve em sua mais comovente e convincente performance.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

REFEIÇÕES

I

Onde a mulher de três seios?

Procuram no covil dos anseios
A transparência das veias
A perfeição disforme dos meios
Que talvez alimentasse a lactância
Que banharia a vil criança...

Onde a perversão dos sulcos
A degustação dos sucos
O doentio cuidado, a cínica complacência
Que possibilitasse sujar
A fralda com outra profícua essência?

Onde a mulher de três seios?
A criança famélica
Quer idolatrar a mais completa mãe.

II

Como craveira
O sabor incomum.
Esboço, caveira
De um enxame
De moscas
Presas em paragem traseira.
Aracne giganta
Elaborou esta teia?
Aracne eu,
Como.

TAMPA DE VIVEIRO

Tarântula de fogo.
Espirro de cerdas.
Fênix barbada.
Uma leve fissura
E a vingança do verde
Apaga a queimada.
Destas cinzas
Não se renasce.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

SASHA GREY

Diz que é de Dorian Gray
“Leio Nietzsche”, ela diz
And she swallows three loads of jizz!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

NADJA

Nada há
Que impeça
De,
Tentacularmente,
Vagar
Como sonho e esperança.
Porção móvel de esperança
Na espera
De,
Ao acaso (objetivo),
Encontrar
Uma mão de fogo na água
(Pois o fogo e a água
São a mesma coisa,
Mas o fogo e o ouro não).

domingo, 15 de agosto de 2010

ESOPO VORE

A raposa e o leão propuseram um acordo. O leão devoraria a raposa e a raposa seria devorada pelo leão. Assim, ambos ficariam satisfeitos. Então, o leão devorou a raposa e a raposa foi devorada pelo leão.
Esta história não tem uma moralidade.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

... É preciso contar esta história. De alguma forma. Algum dia ela será contada. É que ele era um menino especial e o que é especial precisa ser contado, apesar de não sabermos ao certo o motivo. Em uma aula... Ele era especial sempre, mas em uma aula... Ele tinha nove anos. Mas ele tinha essa idade somente em uma aula. Em outras, não. Em certa aula... Ele sempre era admirado. Brincava com os amigos de coisas... esquisitas. Que chamavam a atenção. Tirava coelho de cartola, coelho usando uma cartola menor. Invocava chuva de borboletas à noite, chuva de mariposas de dia. Nesta aula, o professor fez um círculo com as carteiras (método desnecessário) para promover um exercício de classe. De repente, com nove anos, ele levitou. Os colegas adoraram. O professor se enervou, mas ele se centrou na sala e sonhou que era o sol... Ele não era mágico...

... ele se casou com uma beleza estranha. Sua mulher era boa, mas quase transparente. Parecia um mapa, pois as veias assomavam por todo seu corpo. Era tão magra... Ele cresceu normal, amadureceu além dos nove anos, apesar de ainda levitar e sonhar que era o sol. Ela era tão branca... Na realidade, agora ele sonhava mais calorosamente em ser o sol. Ela era tão magra que andava tão curvada que parecia que ia quebrar. Mas não lembrava vidro, apesar de sua fragilidade e tendência transparente. O sol refletia no vidro de forma mais bela... Mas ela era uma mulher boa...

... É uma bela história, na realidade. E precisa ser contada... Ele morreu de forma especial também. Mas teve filhos. A mãe deles tinha olhos roxos, irisados. Eles, não... Mas também morreram. E de encontro ao arco-íris. Confundiram metal dourado com o sol... Não me recordo como ele morreu, apesar de ter sido de forma especial. Talvez por isto também a história precise ser contada. Eu não compreendo porque ela não foi contada... Eu não compreendo. Ele compreendia tanta coisa, e quase nunca se pronunciava. A mulher morreu de leucemia. Quantas manchas... Que mapa terrível. Mas sua beleza não desvaneceu. Só se tornou mais estranha...

... Eu queria contar esta história, mas não compreendo tanta coisa... Acho que ele tinha nove anos em uma aula. E, com certeza, em algum lugar, havia um sol...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Átomo
Por
Átomo
Microagrupando
O mundo
Em macro.
Palavra
Por
Palavra
Discursando
Ato.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

VISITA NOTURNA

DRAMATIS PERSONAE E/OU PERSONAGENS DO CONTO

LÚCIO
LÍVIA
BRUNA

Vibra a campainha de uma casa. Lúcio, de dentro da casa, verifica pela janela sem ser percebido. Com algum esforço, reconhece uma silhueta feminina.

Lúcio – Lívia, venha ver...

Lívia termina de se pentear e atende o pedido de Lúcio. Aproxima-se da janela e, também sem ser percebida, reconhece uma silhueta feminina.

Lívia – Sim, é ela. Atenda.

Lúcio abre a porta, dirige-se ao portão e o abre já em vias de esboçar um sorriso para a silhueta que assume mais nítidos detalhes.

Lúcio – Olá.
Bruna – Olá.
Lúcio – Seja bem-vinda. Entre. A Lívia está lá dentro.

Lúcio e Bruna adentram, ela após ele, a casa. Lívia está sentada em um sofá com um sorriso separando os lábios bastante carminados; porém, seu sorriso parece flexionar uma coceira de indecisão. Enfim se levanta e se dirige até a visita para que uma demora de atitude anfitriã não condicione os termos de um constrangimento.

Lívia – Faz tempinho, hein? Me abraça!

Estreitam, ambas, um confortável abraço.

Bruna – Sim, apesar de morarmos na mesma cidade. Mas é a famosa correria, não é?

Lúcio se sente algo marginalizado.

Lúcio – Universidade, não é?

Lívia se constrange um pouco, enquanto Bruna assente com gestos de cabeça.

Lívia – Sim. Não fazíamos o mesmo curso, mas ingressamos no mesmo ano. Morávamos em repúblicas bastante próximas. Íamos às baladas juntas.

Bruna vira todo seu rosto em direção a Lúcio.

Bruna – Pois é.
Lúcio – Vamos beber algo? Sente-se, Bruna.

Ambas se sentam no sofá ao modo que Lúcio propõe com a apresentação de copos e de uma garrafa que eles bebam vinho.

Bruna – Lúcio, não bebo álcool. Até porque sou vítima de uma gastrite que ainda me incomoda um pouco, mesmo tratada. Me desculpe.

Estranhamente, a expressão de Lúcio reage com um tom de certa preocupação, sem ficar claro que seja pela informação da gastrite.

Lúcio – Suco?
Bruna – Ah, sim. Gostaria. Por favor.
Lúcio – Laranja?
Bruna – Pode ser. Antes suco cítrico que álcool.

Bebem os três. Lúcio atenta para a diferença de tonalidade dos lábios de Lívia e de Bruna. Ou melhor, para a diferença de tonalidade de batom, e como essas tonalidades imperceptivelmente reagem em contato com o vinho, no caso de Lívia, e com o suco, no caso de Bruna.

Lúcio – Mais açúcar ou gelo, Bruna?
Bruna – Não, obrigado, está bom.

Bruna sorri um sorriso que se desprende sutilmente do rosto, flutua um pouco, mas que logo se justapõe mais vivamente.

Lúcio – Como se conheceram, Bruna?

Bruna olha e sorri para Lívia. Então se vira para Lúcio e se mostra mais receptiva que antes.

Bruna – Nos conhecemos em um curso de extensão que nós duas, por um acaso, fizemos. Levantei para questionar um dos palestrantes no mesmo momento que ela. Ela acabou falando na minha frente e após o curso veio se desculpar. Jantamos juntas na universidade e nossa amizade frutificou.
Lívia – É isto...

Lívia e Bruna se entressorriram. Lúcio, que estava em um sofá isolado, levantou-se e se sentou mais próximo a Bruna, que voltou a se tornar um pouco menos receptiva, mas não desambientada. Sorriu de soslaio para Lúcio. Lívia bebia mais séria, olhando para frente. Após um breve ínterim, Bruna se levanta, agora com ar de contentamento.

Bruna – Gostaria de conhecer o lar, doce lar...

Lívia olha para Lúcio, que assente.

Lúcio – Claro, não repare na bagunça... Nem está tão bagunçada, na verdade.

Lívia sorri para Bruna.

Lívia – Sinta-se em doce lar, Bruna.

Bruna sorri para Lívia. Os três perambulam pelos cômodos do interior da casa. Param na porta do quarto de casal.

Lívia – Venha ver este espelho, Bruna.

Bruna se dirige até o espelho ao lado de Lívia. Sente-se um certo receio. Lívia depõe, meio desajeitada, uma das mãos no ombro de Bruna.

Lívia – Sempre gostei deste espelho.
Bruna – Por quê?
Lívia – Porque é próximo da cama.

Bruna sorri com a cabeça voltada para baixo e olha de soslaio para Lúcio, que permanece na porta.

Lívia – Não, não é o que eu quis dizer. É que, quando levanto, gosto de verificar meu rosto sonolento ainda antes de ir ao banheiro. É uma mania. É como se eu somente me reconhecesse de manhã a partir do momento em que vejo meu rosto, ainda com os olhos semicerrados, parecendo uma japonesinha remelenta.

Lúcio sorri.

Bruna – Mas você não é japonesa...
Lívia – Eu sei.

Lúcio gargalha como se quisesse ser percebido. De qualquer forma, é mesmo percebido. Caminha até as duas e se posta atrás de ambas. Os três observam o espelho. Lívia se separa e senta na borda da cama.

Lívia – Sua cama é de mola, Bruna?
Bruna – Não.
Lívia – É gostosa...
Bruna – O quê?
Lívia – Cama de mola.
Bruna – Ah... Ouvi dizer que sim.
Lívia – Experimente...

Bruna se desvia gentilmente de Lúcio e senta ao lado de Lívia.

Bruna – É gostosa...
Lívia – O quê?

Bruna sorri como de um qüiprocó.

Bruna – Cama de mola.
Lívia – Ah, sim. Muito. Não disse?

Lúcio observava as duas como reflexo do espelho. Vira-se e senta na cama, enquanto Lívia se levanta e, quase logo após, Bruna. Lúcio deita e logo se levanta.

Lúcio – Vamos para fora. Temos um pequeno jardim.
Lívia – Bruna não aprecia muito o verde, Lúcio.
Bruna – O que é isso, Lívia? Vamos ver o jardim.
Lúcio – Não, tudo bem...
Bruna – O quê?
Lúcio – Não precisamos.
Bruna – Do quê?
Lúcio – Ver o jardim...
Bruna – Vamos, sim.
Lúcio – Por quê?

Bruna demora um pouco para responder.

Lúcio – Tudo bem. Vamos.

Os três saem para o quintal, Lúcio à frente. Um pequeno jardim floresce. Andam ao redor de alguns canteiros. Lúcio fala como se falasse para uma das flores.

Lúcio – Bruna, na verdade, eu é que não aprecio muito o verde.

Bruna permanece na latência de uma reação.

Bruna – Vamos entrar, então.
Lúcio – Vamos. É a Lívia que aprecia o verde.

Lívia olha de soslaio para Lúcio e sorri para Bruna, que esboça compreensão. Os três adentram novamente o interior da casa, Lívia à frente. Ao passarem pelo quarto, cada um se olha sorrateiramente no espelho, mas não o suficiente para cada um não ter percebido o gesto do outro. Retornam à sala de estar. Sentam-se novamente no sofá. A sensação momentânea é de breve reflexão. Mas de uma reflexão algo esvaziada, com dificuldade de focalizar um objeto. Os três estão sentados no mesmo sofá.

Lívia – Vocês estão com fome?

Lúcio olha com certo ar de estranhamento para o tapete, mas assente ao se virar para Lívia.

Lúcio – Vamos pedir algo ou querem sair?

Lívia olha para Bruna, que também emite um certo ar de desconcerto, embora também assente. Só não se sabe direito com o quê. Então direciona melhor sua atenção a uma resposta mais precisa.

Bruna – Deixem disso. Acho que não precisamos sair. Aqui estamos mais à vontade para conversar. A não ser que vocês queiram sair. Então claro que os acompanho.

Bruna demora-se mais um pouco, mas continua antes que alguém interfira.

Bruna – É que faz muito tempo que eu e Lívia não conversamos. Tanta coisa para falar. Ou não?

Lívia sorri para Bruna.

Lívia – Sim, sim, é verdade.

Lúcio também sorri.

Lúcio – Não querem nem pedir algo?

Lívia observa a reação de Bruna.

Bruna – Eu já comi, na realidade.
Lúcio – Ah...
Bruna – Mas fiquem à vontade.
Lívia – Por nós, não... Pensamos em você. Mas já que você comeu... Está satisfeita?
Bruna – Com o quê?
Lívia – Com o que você comeu.
Bruna – Sim, sim... Como vocês se conheceram?

Lívia olha para Lúcio e retorna o olhar para Bruna.

Lívia – Eu e Lúcio?
Bruna – Sim.
Lívia – Em uma boate.
Bruna – Ah...

Lúcio sorri.

Lívia – Não a freqüentamos mais.
Bruna – Aham...
Lívia – Preferimos nossa casa agora. Pouco saímos.
Bruna – Eu pouco saio também.

Lúcio reflete um pouco.

Lúcio – O que você faz, Bruna?

Lívia olha mais atentamente para Lúcio. Espera a resposta de Bruna. A resposta somente lateja, e Lívia responde por ela.

Lívia – Ela estuda, Lúcio.

Lúcio fica constrangido, mas persiste.

Lúcio – Mas você não tinha terminado o curso na época da Lívia, Bruna?
Bruna – Sim, eu continuei os estudos. Já estou no Doutorado.

Lúcio crê quase inevitável a próxima pergunta.

Lúcio – O que você estuda, Bruna?

Bruna demora tanto para responder que Lúcio gestua uma reação de ênfase.

Bruna – Algo relacionado à sexualidade. Sexualidade humana.

Bruna sorri para Lúcio com uma melancolia que desponta de um sorriso dado em um momento dúbio, deixando transparecer uma fagulha de um sentimento próximo à compaixão. Lúcio sorri um meio-sorriso e Lívia alivia seu corpo recostando-o completamente no sofá e olhando em direção oposta aos dois. Então vira o rosto em direção a ambos com a feição tomada por uma sombra de tédio resignado, mas retoma um sorriso e recompõe seu corpo. Após, a seriedade prolifera com argúcia nos corpos despojados de palavras dos três. É Bruna mesmo quem remaneja o discurso que se escondeu debaixo do sofá.

Bruna – Tanta coisa para falar... Mas temo seja tarde...

Lívia põe dois dedos na têmpora olhando para Bruna. Mas não há preocupação no gesto. Lúcio perde ligeiramente o foco do olhar mas logo o recompõe em direção às duas. Bruna se levanta. Lívia se levanta mais rapidamente e a acompanha até a porta de saída. Lúcio as segue um pouco atrás até os três chegarem em frente a porta por Lívia aberta.

Lívia – Tanta coisa...

Lívia beija levemente Bruna na boca. Lúcio abraça Bruna demoradamente.

Lúcio – Talvez outro dia...

Bruna assente. Após, sai da casa. Quando vêem que ela sai com o carro, Lúcio e Lívia entreolham-se compreensivamente e se abraçam sem nada dizerem. Quando Lívia fecha a porta, cai o pano e/ou o conto acaba.




domingo, 1 de agosto de 2010

TRINITAS

IN NOMINE PATRIS

Nel mezzo del cammin de minha vida,
Em minha selva oscura, clarificou
Aquela Castidade enorme
Que muitas vezes via como tirano disforme.
Ele - sacro enigma -, como mulher,
Permitiu meu cósmico desejo
Alimentar todo o ensejo
De atingi-lo em luz nos cabelos,
Nos seios, no quadril
Como vadia que não cobrasse
Exceto esse cálice de excesso
- Abscesso de fé, abismo ao revés -,
Essa quimera, essa semente,
Esse cuspe cuspido como lágrima de crente
- Vita nuova, plêiade mundana,
Paraíso terrestre.

ET FILII

Orquídeas roxas desabrochando
Com forte perfume rubescente
De indigente.
Calafrio de beleza nos cabelos de Madalena:
Óleo raro de paixão.
Coberta de sangue, a fé é mais bela.

ET SPIRITUS SANCTI

Em dia de caça
É melhor o antigo estilingue.
Ferir e cuidar
Para que voe novamente.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

ESCARIFICAÇÃO

Sem pele,
A carne elege
O vermelho
Como estética.
Ave sangüínea,
Que no ímpeto
Do vôo
Se esforça
Com irritação.
(Voar é mesmo
Desejo à flor da pele.
Não, abaixo dela).
O canto
É uma infecção.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lesto o resto, presto,
E eu, algo mesto,
Meço o mosto
Requesto pelo momento
Em que gesto
Meu reino de sono.
Sou lânguido.
E com certo exibicionismo
(É certo)
Estar no mundo é erotismo.
O conhecimento que experimento
Não é só eficaz ungüento,
Mas é infesto ao resto.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

NULIFICAÇÃO

I

Tudo o que era caduco, alquebrado –
Brinquedo quebrado, espelho partido –
Já anunciava a aventura da cesura,
Suturada na carne, mas como ferida sem cura.
Tudo que ausência poderia, soltura,
Onde a agrura se rende ao prazer do que desprende;
Tudo o que, assente, anula.
Sonho de menino: eunuco.
Com amigo de ocasião, aquilo ceou
O que um do outro roubou.
O amigo, de desejo transtornado,
Mordeu também o pescoço, já decepado.
Não foi para o Paraíso: as asas cortaria.
E no Inferno, quantos membros ainda havia?

II

Co mo es cre ver s em o s bra ços ?

III

A beleza se encontra
Nas mulheres sem braços.
Ao vê-las: libação.
Braços de Vênus: onde estão?

terça-feira, 13 de julho de 2010

ESTADO DE GRAÇA

Casaram-se há cinqüenta anos. Há cinqüenta anos se torturam, mutilam-se, aniquilam-se física e moralmente. Após os conflitos, às vezes se perdia um dedo, uma orelha, um dente. Ela não tinha um olho, mas permanecia com seus belos traços abaixo das chamativas cicatrizes, mesmo na velhice. A humilhação não ocorria somente no momento agradável do sexo, mas igualmente no momento desagradável das relações sociais e cotidianamente familiares. Assassinaram o filho antes de nascer. (Talvez para não tê-lo assassinado depois?). Ele claudicava, mas a memória de sua boa postura se esforçava para equilibrar a antiga elegância e leveza. Tinham traumas, síndromes e fobias. Um pouco antes de morrer (agonizaram em mesmos dia e hora), abraçaram-se, choraram, amaram intensamente, como sempre, e rogaram a clemência do Senhor. Ela disse, entre lágrimas, que foi feliz, mas foi triste, pois queria ter sido prostituta ou freira. Ele disse, entre lágrimas, alguma outra coisa sem importância, ou melhor, de toda importância, pois estavam em estado de graça.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Lavrar a palavra
Para que ela lavre
A insistência de penetrar a existência;
Sendo que, antes,
Já palmilhando fresta, brecha, intermitência
Logrou a máscara produto
Das matérias que, agora,
Cumpre ou deseja retomar como solúveis,
Ainda que por força de autonomia;
Esforça a passagem
Como a deixar nostalgia do branco
Em uma condição de presença arredia,
Rememorando o rastro devassado
Mas sem de Ariadne alguma previdência
Haver indiciado.
Então labirinto,
Taurino obstáculo anuncia
Que heroísmo se faça premente.
Mas anuncia, somente.

GORGÔNEA

Abstrusa musa
- Musa e medo.
Medo que usa
A pedra como meio.
Que recusa qualquer enleio,
Ainda que multiplicado pecado sugira
A ofídica figura.
Mas toda ira já não me causa receio.
Receio do bordão
Da pedra no seio,
Ou melhor,
No coração.

OS DEUSES

Pobres imortais!...
Os deuses não sentem o prazer
Da vida passar.
A volúpia da decomposição
Pressentida no corpo que,
São, observa, mesmo em pranto,
O outro (é o outro que nos revela a morte)
Eufemismado por flores
No sepulcro.
Eufemismado em aspecto, odor, comportamento
(Não ir ao supermercado).
Este pranto, a volúpia no avesso,
Sonha incorporar ao solo,
Pelo sal,
O corpo vertical.
Os deuses não despertam o prazer
Do prenúncio do fim
Após orgasmo -
Abraço fundo com mistério
Rebuscado.
Os deuses não intuem o prazer horizontal.
Não quero perenizar esta consciência intermitente,
Este engenho sutil, esta volúpia.
Não.
Eu quero morrer!...

domingo, 13 de junho de 2010

Deus:
Única Imaginação
Que - porque única -
Do nada,
Do sem-parâmetro,
Criou.
E criando,
Criou algo,
Algo que não é nada,
Ou melhor,
Algo que é algo.
Criou o parâmetro.
Homem:
Única imaginação
Que criou Deus
À sua imagem e semelhança.
Única criação
Que cria o criador.

sábado, 29 de maio de 2010

FATALE

Salomé
- A que morou
No coração
De Moreau -,
Me leva
A cabeça,
Em rútila bandeja,
Para onde quiser.
Vaga com ela,
Prisca odalisca,
Em ponta de pé.
A belisca
Com um beijo,
Espectro do desejo;
A mima
No seio do seu tédio -
Sonho nédio de langor
Que laureia
Uma estranha sorridente
Lua algescendente.
Então nela pisa,
E curvando o corpo
Trejeita um ponto de interrogação,
Que é a resposta
Da minha intenção.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A poesia é a crença de que o fogo ainda está dentro das pedras.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Revê
Seus sonhos,
Rêve,
E

Que nem tudo
Reverbera
Na vida.

domingo, 14 de março de 2010

Cataventos verdes
Resistem a beber água,
A não ser por baixo.

A flexidez de seus troncos
Preenchem o vazio
De areias sem pegadas.

Mas suas sombras, nas areias,
Não iludem a solidão.

Às vezes tudo é tão azul...
E a distância mal revela alguns de seus pedaços.

O sol se centra
E, sentado,
Estende manto dourado
- Essa riqueza do sol de pôr ouro nas coisas -
Onde tudo deixa oscilante:
Sóis, embarcações...

A luz no centro, sempre.
Ao horizonte rente.
As areias, sem pegadas.
O homem,
Quando,
Sempre a vogar.
Ou então, encalhado,
Quando
Não no mar.

[Poema inspirado em elementos do universo pictórico do pintor, desenhista, escritor e fotógrafo Ulysses Farias].

quarta-feira, 10 de março de 2010

DANTE

Virgílio é foda.
E Beatriz... não, não fodo.
Um bicho do mato
Ligeiramente adestrado
Que gosta de ler Baudelaire;
E que, por esculacho,
Um dia fez pétalas
Somente dizerem mal-me-quer.

ME RESPOUND

Após dizer “diluidores”,
O mundo inteiro se diluiu?

UM DESBUNDE

Não me sinto mal em não poder ler a Odisséia em grego.
Qualquer coisa, respondo:
- Sou feliz: posso ejacular no mar.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Era uma vez
Uma vez
Em que uma vez
Não era o suficiente.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sabe a sal
O seio:
Senhorio do solo,
Que de semente em semente,
Sente
Que assume o poder.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

EXPECTATIVA

Amei a Celeste como se ela fosse o céu

Amei a Margarida como se ela fosse uma flor

Amei a Éster como se ela fosse uma estrela

Não posso amar a Glória, e talvez nunca poderei

A Jasmim se perfumava para pensar em mim
Mas suas intenções murcharam
E eu, podado, caí numa melancolia sem fim

(Só me resta, agora, a resposta da Vitória...)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

SEMINAL

Palavra é início.
É sêmen.
Brota as coisas
Que, nascituras,
Carregam o calor uterino
Que se confunde
Com o calor da garganta.
Não é sordidez:
Que palavra
É sêmen na garganta;
E silêncio, espermicida.
Mas silêncio,
Cio do som,
Sonha coisas inauditas,
Que palavra,
Com nitidez maior,
Cultiva.