sexta-feira, 21 de abril de 2017

DE NOVO, NUNCA

Ruborizar a maçã fresca
Que frutifica com a manhã.
Renegociar, então, a dialética
Do dia e da noite,
No ínterim, no interior
Do ínterim que pausa
O movimento – imagem.
Perceber a ritualística do corpo –
Aquela que despercebemos.
Verificar a ritualística da natureza.
Respirar com ela,
Profundamente.
Renegociar, então, as ritualísticas,
O corpo, a natureza.
Guardar na mão o rubi do amor,
Encostá-lo na maçã do rosto
E ver frutificar, de novo, a fresca
Rubra manhã, nunca vista.
Melodiar o pássaro raiado,
De novo, nunca visto.   

PEDAGÓGICA

Uma milf só com espartilho negro chicoteia uma jovem nua de dezoito anos na pequena dungeon de sua casa, que ela elaborou com tanto cuidado. As rugas e as cavidades de uma se encrespam na lisura suave da outra. A língua que já disse tudo se liga à língua que já disse muito pouco. Forte como o suor do sádico, o hálito, os cabelos, os seios de uma tentam prevalecer recendendo seu poder, sua experiência, sua sabedoria, seu império, a inabalável divindade. Mas a jovem, no auge da dor, adquire rugas, cavidades (matizadas cavidades), lacerações que confundem feridas com o tempo, produzindo um novo imaginário realizado na arqueologia do corpo. O rosto força as rugas, é forçado às rugas. A experiência, a sabedoria da dor constrói, por sua vez, seu próprio império, pacientemente. A outra, enquanto cheira e lambe o suor da dor, vai rejuvenescendo um suor mais leve no próprio corpo, que alisa sua pele com a ingenuidade do prazer, essa criança que cria o desejo de ser criança. O suor catalisa o processo de modificação etária, nas vias de uma body modification que faz o natural conviver com o artificial. Quando a criança que antes tinha sessenta anos, e agora menos de dezoito, agarra tremendo pelo pescoço a idosa que antes tinha dezoito anos, e agora mais de sessenta, e olha o sorriso dúbio da slave, sabe que tem muito a aprender. E sabe que a beleza existe quando o crepúsculo de um deus se tensiona, para sempre, com a ascensão de outro.

sábado, 15 de abril de 2017

DIA

            Saiu de casa com uma vaga impressão de para onde iria. Não encontrou o fio de nenhum GPS mental, só um emaranhado de sugestões, uma trança de acasos que poderiam compartilhar suas coincidências se por um acaso coincidissem. Antes de sair, havia escovado os dentes. E o melhor fio dental é o que quebra sob razoável pressão. Antes de os escovar, tinha despertado, talvez. Essas temporalidades, esses atos, parecem não acabar, se mesclam com o resto do dia, com o indefinido resto dos atos, passos, repastos. E mesmo que se repassem, tais temporalidades, atos tais não coincidem em si mesmos, perdem a substância, que nunca tiveram, trocam suas substâncias, que nunca tiveram, compartilham-nas, nunca as tendo tido.
            Caminhou, percalçou as calçadas, caçou por onde pudesse encontrar o que perder. Não soube ao certo o nome das ruas, esteve no avesso ou atrás de todo nome, de toda nomeação, de todo rosto.
            Se deparou com uma profissão. Mudou de profissão durante o período da tarde, foi demitido de todas. Demitiu-se de todas. Nunca soube ao certo com quais profissões se deparou. Parou de imaginá-las.
            Encontrou uma mulher. Aquilo que chamamos uma mulher, ainda. Falou, desfalou. Falou desfalas. Dirigiu-a à casa. Aquilo que chamamos casa. Falhou o falo, a fala do falo falho. Falhar é um ato heroico. Não foi.
            A mulher se despediu, como aquilo que chamamos mulher, ainda, se despede daquilo que chamamos, ainda, homem. Na ausência de outras palavras, de palavras outras. Talvez algo de mulher tenha ficado nele, talvez algo de homem nela. Mas não há substância.
            Dormiu.