sábado, 15 de abril de 2017

DIA

            Saiu de casa com uma vaga impressão de para onde iria. Não encontrou o fio de nenhum GPS mental, só um emaranhado de sugestões, uma trança de acasos que poderiam compartilhar suas coincidências se por um acaso coincidissem. Antes de sair, havia escovado os dentes. E o melhor fio dental é o que quebra sob razoável pressão. Antes de os escovar, tinha despertado, talvez. Essas temporalidades, esses atos, parecem não acabar, se mesclam com o resto do dia, com o indefinido resto dos atos, passos, repastos. E mesmo que se repassem, tais temporalidades, atos tais não coincidem em si mesmos, perdem a substância, que nunca tiveram, trocam suas substâncias, que nunca tiveram, compartilham-nas, nunca as tendo tido.
            Caminhou, percalçou as calçadas, caçou por onde pudesse encontrar o que perder. Não soube ao certo o nome das ruas, esteve no avesso ou atrás de todo nome, de toda nomeação, de todo rosto.
            Se deparou com uma profissão. Mudou de profissão durante o período da tarde, foi demitido de todas. Demitiu-se de todas. Nunca soube ao certo com quais profissões se deparou. Parou de imaginá-las.
            Encontrou uma mulher. Aquilo que chamamos uma mulher, ainda. Falou, desfalou. Falou desfalas. Dirigiu-a à casa. Aquilo que chamamos casa. Falhou o falo, a fala do falo falho. Falhar é um ato heroico. Não foi.
            A mulher se despediu, como aquilo que chamamos mulher, ainda, se despede daquilo que chamamos, ainda, homem. Na ausência de outras palavras, de palavras outras. Talvez algo de mulher tenha ficado nele, talvez algo de homem nela. Mas não há substância.
            Dormiu.

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