quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

FLORICULTURA

Há um snuff movie se movendo
No canto mais escuro da sombra do olho
Da mulher sentada no banco.
Quando ela sorri
Para o conhecido que passa,
Não percebe,
Concentrada na protagonização do filme,
O desejo canibal
Sorrindo junto com os dentes dele,
Que passam salivados.
Os dentes devoraram uma parte
De sua coxa.
Ninguém percebeu.
Um idoso rústico
Espanta a rusga das pombas
E pensa em atrair crianças com pipoca.
Os três estão esperando
A inauguração da nova floricultura,
Próxima à praça.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Em tudo há violência.
A violência em tudo vibra como um mantra.
Viver é uma violência que deprime e encanta.
Esta flor, esta flor que te dou
Carrega a violência de quando da terra se levanta.
Receba esta violência
E faça dela o que lhe aprouver.
Mas a prove como se fosse o amor:
O amor é uma violência santa.
Ame e odeie tudo o que dele vier.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

ARTES MISTAS

Alguns dizem como quem agoura
Que amor também é guerra, luta renhida.
Que o amor não é só envolto
Em perfume como Jacques Guérin.
Mas para o amor nunca fui aguerrido:
Ou saio do sanho campo de batalha
Ou dela logo recebo um golpe que sai
(Por eu não querer lutar)
Como uma joelhada do Spider Silva
Ou um mae geri do Lyoto Machida.
Porém com o tempo a gente melhora
A defesa mais fechada do muay thai.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

CORPO EM TRÂNSITO (OBRA ABERTA)

Sua heteronormatividade discursa
Na linguagem corporal
Padrões de gestualidade
Que uma leitura da fissura
(Ou uma desleitura)
Entrevê nas trevas do texto
A descomedida, o que ultrapassa
A generalidade cisgênera,
Transformando o texto em corpo
(O corpo que é texto),
O corpo de mélange des genres,
O corpo e o texto transgênero,
O corpo e o texto deslido, relido
Em deriva no trânsito:
O corpo do texto, o texto do corpo
Como polissemia em sua reivindicação.

VIA SIMBÓLICA

O leite de seu olho cego
No meu olho é símbolo:
Integração (leite integral)
Com a Via Láctea.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

POETA ANTROPOFÁGICO

Esse creme corporal tem gosto de baunilha
E alimenta meu desejo canibal
Que às vezes insiste em reaparecer.
Não se assuste de repente:
Isto para mim é amor, ou algo próximo ao amor,
O que, convenhamos, já é o suficiente.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Uma harpa em desuso
Súbito vibra os órgãos
Do corpo de uma mulher
Como um ritual emaranhado.
Há um abuso de beleza no dia
Enquanto ela retira com as unhas
Restos de flores dos vãos dos dentes:
Seu sorriso devora flores.
A beleza do dia é inútil
Como a de um pavão
Colorido como as flores sorridas, sortidas, 
Formando um arabesco primaveresco
Na sorte do olhar que perseguir
Este caminho solar.
Ela vive próxima da natureza
Mesmo estando na cidade.
Seu sonho 
– Pois alguns sonhos também sonham –
É se transformar em um mito pagão,
Mesmo que atualizado.
Ela fez uma coroa de mirra.
Ela se mira no espelho do dia.
Ela é louca...
Louca como a felicidade,
Se existisse, seria.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O amor ama o outro corpo,
Se corporifica no outro corpo,
Se modifica, se sente mais,
Modifica e sente mais o outro,
Mesmo que o outro
Permaneça e seja indiferente.
O amor ama o que o outro corpo
Tem de limpo e de sujo,
Ama o luxo e o lixo do corpo.
Se embebe em urina,
Cheira fezes, órgãos sexuais,
Hálito matutino.
O corpo se corporifica no outro
Antes como risco de cisão
Do que como andrógino de Platão.
Antes como risco de deriva
E derrisão, é o amor este perigo
De corpo inteiro.
O corpo inteiro inteiramente
Entregue ao risco da mutilação,
Da separação da cirurgia
Sem anestesia.

O OBSERVADOR

Um pedófilo observa do banco
O tom branco da parte de cima dos pés
Das crianças brincando nas poças de água.
Ele se passa por pai,
Parente ou somente por mais um passeante.
Se passa por tudo, menos por pedófilo.
Mas observando aqueles pés
Talvez ele realmente não seja ali
Um pedófilo à paisana,
Nem um podófilo.
Talvez aqueles pés sejam ali
Somente elementos da paisagem interior
Que o chama e acende alguma chama
Da própria infância.
Uma infância feliz,
Sem violência doméstica ou sexual.
Uma infância saudosa,
Saborosa na memória.
Uma infância que ele quer
Que seja somente dele.
Ele, a única criança feliz.