segunda-feira, 30 de abril de 2012

A MARCA


Nunca foi feliz. Ela tinha uma marca, algo aprofundada, de cor feia, porém esta cor não percebia tão nitidamente seu desajuste, e o desajuste perpetuou um grito desejoso de permanecer na latência de uma harmonia. A harmonia se concretizou em outro nível. O grito do flanco ecoou para além de seu contexto. Nunca foi feliz. Mas ele nunca foi. Ela foi. Porque ele foi a harmonia. A marca, algo aprofundada, parecia uma espécie de local escarificado, uma espécie de cicatriz. E sua vida foi isto. Sua vida de lábios refletidos, vítimas de invaginação, como se as próprias entranhas atendessem ao pedido de uma espécie de amante extraído de si mesmas. Sua língua: lambedora, tilitadora dos próprios dentes, barreiras para que não despertasse para o mundo, para a pele do mundo, que se afastaria côncava. A fronteira eram os dentes; a concavidade, a resposta imediata. Como trepadeiras, as cicatrizes perfilavam somente onde poderiam: eram agora a geografia íntima e intimidada. Toda geografia íntima é um labirinto que se confunde com a floração das veias. A única via era (mas não foi) descobrir ou criar algum descompasso da pele com o desajuste da pele (do mundo). O somente aprofundado se fez profundo.         

segunda-feira, 9 de abril de 2012

POEMA DE FAMÍLIA

Volto para casa excitado

Após observar uma briga de travestis.

Excitado a ponto de espancar minha mulher

E violar minha filha.

Mas não tenho mulher nem filha.

Então resolvo entrar no Facebook.

O mesmo, o eterno retorno do mesmo:

Mulheres promíscuas ou que traem

Vomitando frases amorosas

Com a cara fake do Caio Fernando Abreu.

Penso em postar um poema com o intuito

De que algum crente da auto-ajuda

Ou bombado citando espiritualismo de boteco

Me chame a atenção ou ofenda...

Mas esta fenda de meu exibicionismo é o tédio...

O tédio de não ter uma mulher para espancar

Nem uma filha para abusar.

E eu que sou tão generoso, meu Deus!

Queria conquistar mulheres com defeito

(Físico e mental)

E fazê-las felizes.

Não falo para épater (Le bourgeois c’est moi)...

Falo por tédio.

E eu gosto da palavra “defeito”.

Não gosto da palavra “padrão”, ou “conserto”.

Passo patê na bolacha

E navego em pornografia

Para fazer digestão

E para aprender mais

Sobre a violência física e emocional contemporânea.

E nenhum Agamben

Profanará tal dispositivo.

Saio da internet

E, por extravagância ou outro tipo de ânsia,

Procuro – L’Hermite contemporâneo –

Uma mendiga que aceite pagamento por boquete,

Ou melhor, blowjob.

Que falta uma mulher e uma filha

Fazem a um homem!

Algum esperto me fará alusão a Bukowski

Ou outro autor do mesmo tipo que não sabe escrever.

Não bebo, não fumo.

Só queria uma mulher defeituosa

E uma filha que soubesse agradar o pai.

Penso no que o patê possa épater

E fico enjoado...

Entro novamente no Facebook

E nenhum book abolirá este descaso...

A não ser o do sentido já impuro do Mallarmé.