segunda-feira, 30 de setembro de 2013

MEMENTO MORI

Lembre-se: você morrerá.
Se for homossexual, morrerá.
Se for negro, morrerá.
Se for mulher, morrerá.
Se for da comunidade, morrerá.
Se for sem terra, morrerá.
Se for sem teto, morrerá.
Se for mendigo, morrerá.
Se for travesti, morrerá.
Se for imigrante, morrerá.
Lembre-se: você morrerá.
Nem todos morrerão,
Mas você morrerá.
Se for poeta, morrerei?
Os cílios da noite e seus cilícios
Afagam crimes hediondos
Que o dia não podia acobertar.
Há um crime hediondo
No olhar coberto de ternura.
Há medo em cada olhar,
E o medo anda armado
De mais medo e de armas contra ele.
O silêncio é um cilício
Que dissimula o medo
Quando o silêncio passa sem olhar.
Mas o silêncio também pode matar.
A amada pode matar.
O beco transforma as pessoas.
As luzes artificiais da noite
Disseminam a confusão nos olhares.
As luzes que violentam a noite
Com suas promessas de alegria e afeto,
Com suas promessas ansiolíticas.
Escrevo isto em um banco
De uma pacata praça
De uma pacata cidade
E pretendo lê-lo.
No momento, esta é minha esperança
(Pacata esperança)
De retomar o real afeto.

domingo, 29 de setembro de 2013

DOBRAS

Um ritmo natural oculto na dobra de um dendrobium
Germina calma na textura de meu dedo, como um texto
Esperando o ócio passar para ser lido e ter as palavras
Levemente absorvidas por uma mente absorta
Que pretende não usá-las em favor de qualquer reintegração [prática.
Há sempre uma ética e uma poética na dobra das coisas,
Com seu ritmo próprio e sua insuspeitada capacidade
De ultrapassar o limite de suas bordas,
Atingir a realidade de modo inverso, pela potência da [impraticidade.
A árvore da vida acalmou ainda mais a existência
Ociosa de minha pele, a leu ao léu das dunas do que havia para ler.
Porém um leve adormecimento nas pernas me impele a caminhar [um pouco.
Um amigo da zona rural passa e carrega o sotaque de poesia:
“Oi, óia só, o sor drobô”!
Anoitecia.
Olhei com a fímbria do olho e brinquei mesclando mentalmente
A poesia com o pedantismo farto:
“O sor drobô, parece um dendróbio
- Dendrobium fimbriatum!

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Há muita agressividade, às vezes, em um olhar amoroso.
A retina quer aprisionar a imagem do corpo alheio,
Retirar a liberdade deste corpo
Pensando em com isto conferir outra liberdade.
O olhar amoroso canibaliza o corpo alheio,
Pois sabe que o canibalismo é um ato sagrado,
Um ato de fé, apaixonado.
Porém de busca de poder também.
A retina sabe o que sobra e o que se retira do corpo alheio.
Ela não é alheia a nada, nem à fé nem ao poder.
Um olhar amoroso é quando o globo ocular
Tenta calcular a ilusão de que o globo terrestre
Não pode ocultar o objeto de desejo,
E que este objeto, que não é objeto,
É passível de inspeção detalhada
E apreensão de alguma essência maturada.
Mesmo sabendo que não há nada no corpo alheio
Além do corpo, o olhar amoroso nele vê
O maior anseio ao poder e à fé.
O amor seja isto, talvez: uma imagem motivada. 
Pávido pavão
Se apavorou com as próprias cores.
Seu pesadelo é cromático
E o persegue aonde vá
Pavonear seus estranhos temores.
Belo pesadelo vivo, o horror da cor
O estonteia, o mortifica.
Já não quer atrair as fêmeas,
Já não quer exibir
Sua vasta inutilidade seletiva.
Parvo Pavo, Argos
Temente ao seu próprio panóptico
De ocelos, como se algo
O tivesse arrependido.
Subjugado pela autorreferência,
Seu tormento autotélico
O faz mais belo,
Sua agrura mais ressalta
Sua beleza a cada sobressalto,
A cada desventura de desvairada ave
Ao tentar um salto
Da própria colorida e suave torre de marfim;
Mas ao invés de descer mais iridesce
Sua exuberância que mais a estremece.
O pavão, tão belo,
Desconhece a natureza da beleza,
O pavor que ela carrega e exibe,
O imprevisível, este susto incompreensível
Que se abre e devora tudo.
Ou talvez ele saiba muito;
Saiba que a beleza
É o pavão apavorado,
O susto que quanto mais assusta
Mais se exibe exaltado.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Com o sabor lúdico
De um Platão pós-moderno,
Absorvo sua alma com o sorvo de um beijo
E a assopro na base do narguilé
Para fumá-la
E então lha devolver
Revivendo seus olhos
Agora com azo mais asiático,
Intoxicados com a própria alma.
Sempre busco sua beleza.
Há beleza em seu corpo,
Em seu discurso de rocambole
(Barroco e doce),
Em seu odor e hálito polígamo
Da glote poliglota,
Nos seus jogos animais e estudados
De um primata polímata.
Mas quero a beleza que estranha o mundo,
Que extravie o travo das travas
Em tragos de trevas,
O susto, primordial e contemporâneo,
O susto absoluto,
Que surpreende o susto
Em sua banalidade arrependida.
Quero ver, de início, seu corpo no escuro
Dialogando com as sombras
Apenas com a imperceptível umidade
De um olhar estranhamente emocionado;
Depois as mutações, o corpo fragmentado,
Os jogos de luz e sombra
Que sua alma amentolada for praticando
Com seu corpo assombrado,
Os olhos gueixos travando solitários
Já na imensa noite
Batalhas de espadas alucinadas
De samuraios expectorados
Dos bruscos contatos;
E então fazer com os gestos compreender
Que a androginia é um mito muito belo,
Mas que o futuro
É esta noite assombrada,
Esta imensa noite de sombra e luz
Onde os focos se alteram a cada passo. 

A CARNE

Faço o pedido: carne suína.
Penso nas profissões de cozinheiro e de garçom.
Um prepara, outro serve a carne.
Não precisarão torturar nem matar.
O matadouro é perto de minha casa
E às vezes sinto o odor...
Amo carne suína, assim como outras carnes.
Possivelmente eu odeie porcos.
Possivelmente eu odeie muitos outros animais.
Ou não.
A sensação é complexa.
Penso em sua tortura e os devoro.
Meu hábito me deixa satisfeito.
Sofro um pouco, mas no fundo sou feliz.
Não comeria meu cão.
Provavelmente não comeria meu cão.
Tenho uma sensação pior em pensar em meu cão
Tendo olhos extraídos, intestino pendurado,
Pele arrancada, gancho no ânus,
Pernas quebradas com cano...
Não há sangue no prato.
Talvez ele tenha se afogado no próprio sangue
Após ter a traqueia destruída.
Paro de pensar
(Em uma caldeira escaldante se queima até a morte
Ou se morre afogado?).
Quero comer, ser feliz.
É para isto que vivo.
Impossível não correr atrás da própria felicidade,
Do próprio prazer...
O matadouro é perto de minha casa...


terça-feira, 24 de setembro de 2013

SÉRIE

I

Janto ouvindo
Um apresentador sensacionalista
Expondo o tiro
Que um policial à paisana
Desferiu em um mercado
(O assaltante era o negro
Porque o branco não conseguiram mostrar).
Quando ponho
O feijão com tranqueira na boca,
Ele expõe como uma menor
Foi sequestrada e torturada
Por um casal.
Havia urina canina no esquema de tortura...
Bebo o suco de laranja.

II

Saio.
Como a sobremesa
Vendo do vidro um mendigo
Tentando vender algo sujo
E sem sentido útil.
Ele não quer comida,
Quer bebida.
Este desejo não justifica
Nem justificou
O fato de ele ainda estar ali...
A sobremesa é boa.

III

Converso com uma amiga
Que encontrei na rua:
“Parei com o pó,
Só erva agora.
Nossa, rolou meio
Que uma suruba
Naquela balada lá!
Saí com homem e mulher.
Não estou nem aí.
Digam o que quiserem.
Por que você não foi?
Estou de mal.
Ah, gostei do seu último poema,
Mas ainda não li inteiro”.
Respondo que não pude ir
E agradeço.
Sorrio.
Sim, digam o que quiserem.
Chega também um amigo crente,
Conversamos mais um pouco
E nos despedimos.

IV

Vejo a Veja na banca de jornal.
Vejo alguma notícia global.
Meu corpo recorda
A abstinência de pornografia.
Qual o meu vício?

V

Tenho insônia, mas adormeço.


Um belo odor
Sustenta a espinha da manhã,
Carrega a manhã
Com sua essência plural,
Levemente piromaníaca,
Plumívona de or
Acão pássara
Que logo passará
Como toda oração,
Que precisará de mais oração
(Daquelas de ouro)
Para que se teça a manhã,
Sempre amanhã. 
Uma nova espécie de manifestação das folhas
Propõe entre elas um ativismo lésbico,
Mas insuficiente para que cesse a perseguição
De um diretório invisível de cicatrizes
De um corpo que tem consciência orgânica
De que o fluido tem uma diferença
Somente relativa com o sólido.
O corpo corre um desespero imaginário
Na realidade do sonho que percorre
A corrida de bacantes baqueadas de beck
Com odor anacrônico de groupies dos anos 70.
Realidade do sonho que persegue a realidade
E quer a todo custo a experiência custosa
De uma cicatriz em um corpo líquido
Fugindo ao som de uma lira ou de uma guitarra
Que, com acordes andróginos, tenta
Fugir da própria fuga e se afoga
Após um jazz fusion que lembra Jeff Beck.  

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

EPIFANÓIDE

Uma anemocoria de nuvens
Sementou a lavoura arcaica do céu
De uma rebeldia suave
De imagens andróginas.
O androceu de uma das nuvens,
Em um estado entre o sagrado e o ateu,
Brilhou e se abriu,
Abençoado de fluidos,
Como o diamante louco do Pink Floyd.
O brilho epifânico
Teve sensação de andropausa
Quando na pausa da música celeste
Que só meus ouvidos ouviam,
Anacoretas e quase crentes
Em que alguma espécie
De entidade das lavouras
Retomasse a fé
De uma reposição hormonal.

sábado, 21 de setembro de 2013

APOLOGIA DA MAQUIAGEM

A mulher se maquiando é uma potência de hiato temporal.
Tudo ao redor se estabelece como foco
Para que o ato perfeitamente ocorra.
A cor adquire uma substancialidade artística,
Uma função moral contra a natureza,
Ou então uma função moral de se relacionar
Com ela de modo mais profundo.
A superficialidade da maquiagem
É superficial somente na superfície;
O rímel ri e a sombra sorri
Desta superficialidade de superfície.
A maquiagem autêntica não é, em primeira instância,
Para os outros nem para si, mas para o ato em si.
É um diálogo em silêncio ritual,
Um estado crítico sempre maquiado
De outras espécies de estados,
E não se imagina que em uma nécessaire
Há o necessário para que se trave
Uma vereda intuitiva entre Rousseau e Baudelaire.
A mulher é bela com ou sem maquiagem,
Mas o ato tudo modifica,
Cria a hipótese de se alterar o rumo
De agenciamentos do corpo e da natureza,
Do corpo e do corpo.
A mulher maquiada é esta criação,
Esta hipótese ambulante aberta à discussão,
Por mais fechada e na superfície que possa parecer.
A mulher é, no fundo, sempre bela.
É a aparição, o mundo aparece através dela.
Mas não é a mulher que, no fundo, usa a maquiagem.
É a maquiagem que a usa como medium.
A maquiagem é aquela verdade através da ilusão. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

SEM TÍTULO (A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES É SEMPRE LACUNAR.)

Para Hercília Fernandes

A história das relações é sempre lacunar.
O que preenche a deficiência ontológica
A que a abertura ao outro condena?
A consciência da carência, da falta,
Da saudade da proximidade
Imaginada e depois realizada
Pela comunicação da própria lacuna,
Pela voz da própria contingência,
Pelo desejo de discurso, discurso encorpado
Pela momentânea revolta do corpo e da consciência,
Do cogito que cogita outra presença
Porque não aceita um estado
De total permanência?
Serão os nós do eu, os nós do outro, os nós de nós
As linhas enoveladas
De uma partitura sem maestro,
Os cios do som e os sons do cio após?
Sons do cio silente como as reticências
De uma lacuna onde cabe pela ausência
A autêntica história, o autêntico amor,
A autêntica ilusão, o autêntico estro
De toda autêntica criação.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

CONSTATAÇÃO

Menor, viciada e ajuda no tráfico.
Tem indícios de esquizofrenia
E talvez isto justifique
A agitação lateral dos braços,
Como se estivesse realizando algum tipo de nado.
Há uma graça nisto.
Isto estimula seu lado infantil,
Assim como, talvez, os cabelos encardidos.
Uma graça:
Menor, viciada e ajuda no tráfico.
Tento extrair alguma pureza dela.
A gesticulação aparentemente infantil e os cabelos sujos
Seriam suficientes
Ou somente distorções românticas
De poeta querendo escrever um poema
Sobre uma menor viciada que ajuda no tráfico?
Tento me sugerir elementos de sua história pessoal
Para extrair a pureza.
Acrescento à sua história violência doméstica,
Pressão e opressão do meio.
Ainda a pureza se distancia.
Afinal, no que a violência sofrida
Se relaciona com a pureza?
Pureza perdida?
Seus braços esquizóides
Vão sumindo na esquina.
Não consegui extrair nenhuma pureza.
Mas se houver pureza
Que a acompanhe de alguma forma
No ângulo da esquina,
Talvez de nada adiante.
Talvez a pureza só tenha função moral em poemas.