quarta-feira, 31 de julho de 2013

LOBOTOMIA

Minha licantropia,
Que confunde a clínica com a folclórica,
Violentou e devorou
Um pedaço da lua cheia,
Que estava cheia de aberrações
Em forma de vísceras.
Um conto de fadas mutilou a noite
Nos rastro das tranças
Da Rapunzel estripada.
Agora todos podem
Satisfazer seus desejos,
Até mesmo os casais de namorados
Menos conspurcados
Pela poesia da lua,
Que sempre esteve presente em suas vidas.
Amor, eu amo esta sóror.
Amor, eu sou o voyeur;
Há algo na minha pele
Como a pele dela.
Abençoa a minha fantasiosa porfiria. 

terça-feira, 30 de julho de 2013

LETES

            Ela se esqueceu do número, se lembrou do número na carteira, se esqueceu de onde estava a carteira, se lembrou de que estava no sobretudo, se esqueceu de onde estava o sobretudo, se lembrou de que estava no guarda-roupa do fundo, se esqueceu de onde se localizava o fundo, procurou o fundo, que no fundo talvez não estivesse no fundo, mas sendo no fundo a possibilidade de que não estivesse, devesse procurar ainda o fundo, algum fundo, mesmo que fosse uma espécie de superfície aparente ou mesmo uma superfície profunda, aprofundada em sua própria espécie de superfície ao menos até enquanto durasse o discurso da durée que, antes de qualquer discurso, só em discurso se configura para esta figura feminina que no Letes se esquece e após, esquecida, se esquece do Letes, mas um orvalho nos cabelos ou nos olhos respinga nos lábios e novamente ela se esquece no Letes e se esquece de tudo, e este ciclo, este eterno retorno que também progride conflui de algum modo misterioso como alétheia para o fundo do seu peito (seu e não dela), que é também uma espécie de superfície aprofundada, e lá só há esquecimento, lá ela se esquece de, lá ela se esquece, seu coração (seu e não o dela, o coração, o eterno símbolo vão) é o Letes.  

sábado, 27 de julho de 2013

POEMA PARA UMA OFICINA DE RAKÚ

                                                                                                            Para Luka Fagundes

Uma floresta salpicada
(Um salpico de floresta)
Permite que uma lesma
Tente violentar a paisagem.
Uma entidade aracnídea no escuro
Não consegue assombrar a lesma.
Mas uma resma de folhas
Cai em contemplativas mãos
Que adquirem uma fresquidão élfica
Num sonho panteísta
Como o da primeira sinalefa
De um discurso que se quis adâmico.
Nos arredores da floresta,
Fora de seu interior,
É a noite dos mortos-vivos.
Usuários de crack caem ao tentar
Encenar uma triste paródia de Thriller.
Planando, um eu deslocado,
Sobressaltoso com seu descontrole racional,
Consegue perceber
Seu próprio estranhamento transfigurado:
O eu pós-cozido revelado.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

ESTÓRIA

Vi a viola encantada pelo Diabo
Travar o diálogo de morte
Entre o Zé Navaia e o Tonho Coitado.
A aloirada de olho enluarado
Acordou os acordes do Inferno
E se transformou na amada
Por qual os dois tinham o coração açoitado.
Já vi tanta coisa que não conto mais nada.
O olho enluarado da aloirada
Foi fatiado por um filete vermelho
Que no final se dividiu
Em uma linha toda bifurcada.
É este espelho da garganta cortada
Que vibra as cordas das noites da estória
Da viola pelo Diabo encantada.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

SEM TÍTULO (HÁ POUCAS FOLHAS, MAIS GALHOS.)

Há poucas folhas, mais galhos.
Um pingo de orvalho cai com febre.
Febricita um contorno amarelado,
Alaranjado, avermelhado
No perfil doentio dos galhos.
Mas mais tarde uma camada prateada
Assaltará estas extremidades.
Vão fosforescer
Com esta camada mais espessa
E brilhante.
Folhas de prata faiscada
Cobrirão os galhos espantados.
Há um diálogo febril entre mim
E estes galhos raquíticos.
O esmalte fosco da noite
Dará no máximo um ósculo de caspa,
E na melhor das hipóteses
Terá efeito de um rasgo
No contexto de uma pintura abstrata.
Uma raspa de carraspana
Fará mais um pingo cair de um galho:
Lágrima lúdica de um sorriso sofisticado. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

SEM TÍTULO (NESTAS RUAS NOTURNAS HÁ MUITO CÃO.)

Nestas ruas noturnas há muito cão.
Alguns aí estão por causa de donos imbecis,
Outros pela ausência de donos.
De qualquer modo passam frio e fome.
Às vezes fico tentado a querer vê-los mortos,
Assim como Sade em um acesso de falsa esquerda
Queria ver mortos os indigentes e seu sofrimento
Perante um Estado inoperante.
Às vezes os observo devorando gatos,
Estraçalhando-os cada um ao seu lado.
O sangue matutino não será só do pôr-do-sol,
Eu sempre soube.
Schopenhauer também era um estúpido sabido:
A Natureza é cruel, não só o homem.
Casou-se com um cão, enfim...
Alguns rústicos das antigas ainda se casam com animais.
Hoje existe a discussão sobre zoofilia e crime.
Estas discussões ofendem minha inteligência
E paciência.
Os cães me perseguem na noite,
Alguns medrosos, outros raivosos.
Os malditos sabem o que pensamos
Através da ausência de pensamento deles.
Tento dispersá-los, mas sei
Que nunca fugiremos dos cães. 

domingo, 14 de julho de 2013

SEM TÍTULO (QUE ÂNSIA BESUNTADA DE BIZANTINA É ESTA)

Que ânsia besuntada de bizantina é esta
Que na esfingida pose de dragão de komodo
No cômodo do repouso lança estática
Pelo olhar salamantras de fogo rebuscado
A algo que não existe a não ser
Em seu próprio onilírico olho?
O fogo despenca em seu próprio vulcão,
E a vida é isto, minha mandrágora sulamita:
Um fogaréu de desejo para o nada,
Sem a condescendência de um Rei Salomão.

sábado, 13 de julho de 2013

POEMA MATERNAL

O filho em um surto de vidência
Prevê o câncer de mama da mãe,
Pára de mamar e morde o seio com violência
Até que a mãe, ao se ver sangrar,
Pressiona com a mão a cabeça do filho malsão,
Do filho maldito que ela prevê
Poeta ao algo pior do tipo
E o faz estatelar no chão
Aéreo de estrelas que a janela permite.
A criança, deprimida, insiste na mordida
E ataca, pelo odor e por amor, o local de onde saiu.
Retornar ao ventre: o sonho,
A utopia de toda criança.
Toda criança é amante das vísceras,
É visceral e devoradora
Como o local de onde saiu.
A mãe, arrependida, incentiva esta mutilação;
Incentiva, enfim, a mutilação do retorno,
Quando a mutilação ainda não havia...
Há uma criança em cada espelho do dia.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

SEM TÍTULO (UM BALÉ MENSTRUADO CORA A BÚSSOLA DA NOITE,)

Um balé menstruado cora a bússola da noite,
Decora de improviso novas possibilidades
De luzes cruzando as ruas.
Bebês nascem neste balé,
E são amamentados pelos passos fiatlucíferos
Como anticristos de pele alvirósea
Desfiando um rosário meio arrependido, oscilante
De investigações teológicas pela boca dos becos
Mais corcundas, de rostos escondidos,
Dentes omitidos, endereços mentidos.
A bailarina quer beber todo o pus noturno
Que vaza na escuridão graduada.
Uma mulher vai se matar e o balé a envolve
Em uma série de digressões e práticas
De posições corporais específicas
Que parodiam e enganam a morte;
A bala do revólver revolve
Uma surpreendente balística teatral
E talvez a noite acabe se fechando
Em seu ventre com esta peça,
A não ser que peça mais um pouco de tempo
Para que a bailarina considere e salve
O resto do mundo.
Mas talvez ela não veja muito sentido nisto.

terça-feira, 9 de julho de 2013

TEMPLO

Uma teofania se concentra
No itinerário de meu sangue.
Minhas veias são um templo
Que transborda quando ofendido
E empapa o mundo
De sacrilégio e consagração
Quando tem o portão fendido.
O sagrado é vermelho
E irriga o corpo e o mundo.
Irriga um espaço, o alimento,
Um ato humano, um momento,
E o sexo, a cerimônia do sexo.
O sagrado é sacrílego
Em sua forma mais autêntica,
É assassino de Deus,
Teme a si mesmo, e não a Deus,
E este temor é o prazer da fascinação
Do vermelho que irriga o templo.
O sagrado é a habitação no verbo
Que não se diz, no verbo morto
Ou suspenso, no verbo sem valor
Repleto de significado de tudo,
No verbo reverberando na vibração
Do sangue irrigando o templo.
Um ferimento é um alvorecer
No templo de tudo. 

segunda-feira, 8 de julho de 2013

UMA FILOSOFIA DE CAMA

Uma pele escamada, por dedos molhados
Antes levados aos lábios folheada,
É um livro, uma cultura, um repertório simbólico
Compartilhado coletivamente
Na solidão com um parceiro
De uma (eterna) noite ardente.
Como evitar neste momento (eterno)
A voz tentadora deste memento more que não morre,
O fóssil que finge vida
Com a inscrição “semper eadem” nos ossos
A encaracolar o silvo da serpente do Éden?
Como demover a ossatura da cultura
Folheando com os dedos molhados
Uma pele escamada
Em uma noite (eterna) na solidão compartilhada?
Remover cada escama que se enrosca na cama?
Descamar (levantar da cama)?
Desenvolver um novo arsenal simbólico
A partir do que se ama?
Reconferir este amor de modo a compor
Uma nova relação entre folha e cama
Até que a noção de cultura
Se torne uma sensação temporal
Na qual a eternidade é eterna somente enquanto dure
Uma outra sensação de vertigem e ilusão
Que reivindique para a eternidade
Uma eterna progressão
Onde o progresso eterno (tão nosso)
E a eternidade (tão nossa),
Esta sendo um processo, um devir,
Uma contingência eternizada em cada porvir,
Assim constatando que cada página
Será uma mentalidade repaginada,
Serão uma pele nova com o desejo de eternizar
Cada contato, cada toque,
Mas que a cada folheada
Exige que tudo
- O contato, o toque, a saliva,
O jeito, o trejeito, e de tudo isto
Um símbolo que se move -
Se comova e se retoque e se renove
Como uma pele viva e racional que semove
No mais árido areal e no colchão mais mole?

SEM TÍTULO (NESTE EXATO MOMENTO)

Neste exato momento
Algum casal apaixonado
(Ou não apaixonado)
Está transando,
Alguém está sendo assassinado
Neste ou naquele beco,
Ou em beco algum
Mas em qualquer outro lugar
Pois todos os lugares
São de matar e morrer.
Um casal transando
E alguém sendo assassinado.
Talvez o prazer do casal
Se confunda com o do assassino,
E a dor da vítima
Se confunda com a de outro alguém
Que neste exato momento
Está sendo violentado
(Talvez uma criança,
Uma criança abusada
Por algum ente familiar
Dentro da própria casa),
Ou com a dor de uma criança
Esmolando no farol.
Talvez o prazer do abusador
Se confunda com o prazer do casal
E do assassino,
Pois o prazer (também a dor)
Não distingue contexto.
O presente é o reconhecimento da vida;
Por isto estou, neste exato momento,
Tentando ser o mais exato possível
No objetivo de absorver tudo isto.
Não estou bem,
Estou profundamente perturbado.
Estou escrevendo este poema
E não posso fazer mais nada agora,
E talvez nem depois,
Nem em termos da satisfação do prazer
Nem em termos do apaziguamento
Da dor.
Estou profundamente perturbado.
O presente não tem fim
Quando a vida se reconhece. 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

SEM TÍTULO (MEU CORPO FORA DO SONHO,)

Meu corpo fora do sonho,
Mas repleto de sono,
Percebeu pelo esgar da palpitação sanguínea
Que ela o sonhava na massagem estática
Das fibras de seu próprio sono,
Das fibras semiconscientes
Que fizeram coligir uma sonoplastia
Que harmonizava o sono ao sonho
E um sonho ao outro,
Sem mais compreender em detalhes
De quem era um sonho e de quem o outro
Até que a distância dos corpos sônicos
Fora do sonho,
Mas talvez sonhados pelo sono,
Sugeriu timidamente
Uma forma especial de reconhecimento,
Pelo espaço em branco,
Mas recheado de todas as coisas do mundo
(Sonhadas e não sonhadas),
Entre um e outro corpo,
Talvez agora ainda mais sonhados
Pelo sono e pela vaga sonoplastia,
A sonoplastia dos pelos
Eriçados pelo frio,
Do desejo barroquizando veias e órgãos,
Desejo vago pelos espaços vagos do mundo,
Pela vaguidez das próprias coisas
Que logo serão engolidas
Pela sintética garganta de Big-Bang
Do galo e seu rouco rococoricó.
Meu corpo sonhado pelo sonho alheio,
Pelo meu e pelo outro sono,
Pela sonoplastia que plugou
Através do labirinto da distância
A sonhadora acordada em sonho
Que, pelo sono, me sonhava
Do meu lado, não será mais o mesmo.
Nenhum corpo é o mesmo
Após sonhar.   

terça-feira, 2 de julho de 2013

SEM TÍTULO (ALGUMA COISA SEMPRE PERMANECE)

Alguma coisa sempre permanece
E se mistura com outras coisas que permanecem.
Há correspondência
Entre a permanência das coisas,
Entre as coisas permanecentes.
O último amargor da boca
Permanece na comida após a despedida
E vai deixar agridoce o doce da sobremesa,
E vai se misturar com algum odor
Do banheiro que vai costear
O hálito da própria pessoa da despedida;
Mas o hálito da pessoa da despedida,
Bastante distante,
Será banhado por um refluxo de menta
Ou de rosas que alterará o cardápio olfativo,
Que se tornará mais diverso e complexo.
Este odor se esvai na memória e vai acender
Depois a lembrança de alguma cena
Em estado de déjà-vu que alterará o presente
Como um presente de grego do passado (mítico)
Que escarafunchará um buraco no tempo
E no espaço antes facilmente localizável.
As coisas que permanecem
São as coisas que não deixam nada sempre estável.
É preciso a eternidade destas coisas
(Que são coisas e não coisas)
Para que a inércia se mantenha
Na ordem do dia da volubilidade
De todas as transformações,
Mudanças bruscas e sutis,
Alterações, deslocamentos, acidentes...
O hálito da boca da distante pessoa da despedida
É sintoma de que os astros ou a sociedade
Sofrerão alguma revolução
Ou de que os longos cabelos de Deus
Foram levemente tocados
Com um delicado revoluteio barroco.
Talvez sempre haverá mais eco do que se pense
No meio de qualquer meneio por mais oco.