domingo, 26 de dezembro de 2021

AUSÊNCIA

A tela de luz que encobre

Também encobrece a nuvem,

Ôfega na sobrevida entardecida,

Ofelina, tentando, voluptuosa,

Contornar um afogamento que,

Na falta de água, é de cor.

Luz poluta, ingênua, assassina

Que se gradua para o luto

Da ausência de cor.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

BLANCHE DU NOIR

A lolita gótica

Descortina a noite,

Encoberta e farmacopornográfica.

Abraça a arlequina,

Vão procurar novas drogas

Com o i-boy,

Ora um Humbert Humbert

Com vocabulário tecnomano,

Ora um clowcel

Que descobriu no tráfico

Um afrodisíaco.

A noite funambula suas camadas,

A superficial, noturna,

A outra, mais noturna, infinita,

A cosplayer, a alucinógena

E alucinada, enfurrycida.

Mais ao longe,

Na saída de um rock pub,

Um sorriso sinaliza

Batom negro, tatuagem facial

Ou mesmo uma gag aranha?

Do chão, a lua cabe na gag

Devoradora que é o sorriso

Que expandiu

Um sonoro sonho momentâneo.

Há algum homem morcego?

Em uma lanchonete

Gourmet artesanal

Uma menina com camiseta

Lésbica heteroflex

Lê no celular o título de um artigo

Sobre punk veganarquista.

Em um café meio sujo,

Uma personagem deslocada,

Como Blanche, lê Blanchot.

Lê o título de uma obra

De Blanchot.

A noite infinita.

O discurso infinito.

Qual o fim da noite

Para se descortinar

A noite sem fim?

A noite blanche

É a cortina entreaberta

Da noite noire,

Investigada até a noite

Mais aberta e mais insondável,

Até a expansão impossível

Da noite...

Noite blanche du noir.

domingo, 8 de agosto de 2021

HISTORICISTA

Narrativas fotográficas passam

Ventando a história por minha janela.

Fotografar as narrativas

É aprofundar um simulacro,

Dessubstancializar ou reforçar seus sentidos?

Fotografar com os olhos,

Com as câmeras digitais, oculares.

A história que passa só fixa

A passagem, passa o que fixou,

Não permanece o que ficou.

Minha janela arquivou a mobilidade

Da história através de meus olhos

Da realidade lá fora.

Aqui dentro iludo, eludo, elido

O som, surdo, para vivar paisagens sonoras

E as transportar para as paisagens visuais

Da história lá fora.

Aqui dentro, a tentação da passagem

Da janela para a tela.

História. Onde as melhores imagens dela?

sábado, 19 de junho de 2021

UM PAISAGISMO

 Uma paisagem sonora,

Como o fantasma da fantasia,

Toca no corpo, gemebundo, sutilmente.

A paisagem é corporal agora,

Um pouco à paisana.

Tento imaginar, sonoramente,

Um tapete persa, sofisticada persiana.

Mas, não, nada disso por enquanto.

Os dedos, o rococó tornozelo,

O silente zelo das pernas, da bunda

São a paisagem tensa

Da distensão, do frouxo relaxamento.

Os lábios mordiscam algumas notas

Que os cabelos ouvem polifonicamente,

E assim as compreendem.

O pós-caligulino hálito ressacado

Entontece as notas

Com a sonhada orgia

Regada à saliva no escuro

Da goela, próxima da úvula.

Também tento, sonoramente,

Imaginar uma nota de uva,

Assim como falar da vulva.

Mas tal região vive sua própria tensão,

Seu próprio concerto sociobiológico.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

SANGRENA


O gato de olhos sangros

Eriça os cabelos da noite.

Que mênstrua mensagem

Passaria sua passagem?

Os cabelos da noite

Nos galhos da noite

Descansam, dormitam

O sono dos injustos,

A vigília dos justos.

Mas que sangue ainda luz

Nas madeixas, que vermelho

Meneia mudas queixas?

O pássaro pia o dia com gangrena

Da noite nulificada,

Pelo sangue do dia encharcada.

Não mais se estanca do dia a veia,

E o que se anula

Ainda guarda sua caveira:

O pássaro gangrena,

O pássaro sangra,

O pássaro sangrena.

 

terça-feira, 18 de maio de 2021

NATIMORTO

A massa do sonho

Rasteja na fronha,

Enrodilha o edredom.

Caliginoso, adrede

Adentra a boca

E adormece em seu halitoso

Esmegma.

A boca que desperta

Recondita, escova, redondilha

E cospe os sonhos do sonho.

O som do sonho, bochechoso,

É aquoso, e corre

Uma sombra de desejo,

Um fio de infinito

Que o ralo desfia,

Desfibra, deslinda, des

De que nasceu.

sábado, 3 de abril de 2021

TINDER

Quero um sugar daddy.

Sou de esquerda.

Não quero mulher com filho.

Não agora.

Nem com celulite.

É casado?

Quanto ganha?

É médico?

Manda foto de agora.

Vamos nos encontrar.

Quando?

Quando quiser.

Na semana que vem?

Não dá.

Sou feminista.

Não diga oi.

Seja criativo.

Leu o perfil?

Sou bissexual.

Bom dia.

Boa tarde.

Boa noite.

Bom dia.

Boa tarde.

Boa noite.

Quero me casar.

Ninguém quer.

Quero foder.

Quero ménage.

Quantas vezes fez?

Várias.

Uma.

Nenhuma...

Não sei o que quero.

Você é abusador?

 

 

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

SEM TÍTULO (O CABRALINO INSUPORTÁVEL)

 O cabralino insuportável

(Que só lê, não deslê)

Canta a insuportável bukowskiana

Entre os comes e bebes

Do evento cultural

Que tenta não ser um evento-encenação.

Passam a noite lendo, não deslendo

Toda a lida burocrática,

Insuportável, da aproximação.

A bukowskiana,

Insuportavelmente bêbada,

Já relida e deslindada,

Parece não querer mais nada.

O cabralino, sem querer tecer a manhã,

Não mais querendo catar feijões,

Começa a deslida,

A partir da porta de saída.

quarta-feira, 17 de março de 2021

SEM TÍTULO (DISTANTES, FALAM CÃES.)

Distantes, falam cães.

Mais próximas, pessoas latem.

Nos latidos, ruídos de fala,

Projetos de articulação

Fazem coro com os que emito

Abrindo os olhos com o lento ritmo

Do sol nascendo, coral.

São diversificados os ritmos da vida.

Já disseram: inumeráveis.

O pentâmetro iâmbico dita

A mastigação, a natação?...

Quem o sente, sem sequer conhecer?

Principalmente sem sequer conhecer.

Os ingleses tentam, tentaram.

Troqueus, espondeus,

Cesuras alexandrinas.

Tais ritmos movimentam a vida,

Cadenciam a respiração,

Organizam-na junto ao universo

Em uma bela e metabólica ilusão.

Quais os ritmos das falas dos cães

E dos latidos dos homens?

E das mulheres?

Para quem as redondilhas maiores,

E as menores, e os heroicos e os sáficos?

Sobretudo inumeráveis são os ritmos.

Permaneço lento como o sol matutino,

Tentando despertar,

Mas quase livres, quase brancos.

 

quarta-feira, 10 de março de 2021

HOMEM CONTEMPORÂNEO


Cozinha, lava,

Passa, limpa

Com ela.

No domingo,

Bate o bolo

(E bate nela).

terça-feira, 9 de março de 2021

SEM TÍTULO (DE UM MOURISCO ENTIBIADO,)


De um mourisco entibiado,

O risco no telhado

Brilha baço, falso, e faúlha

Dois fósforos acima do faro.

Mira a lua, farol

Do mar noturno,

E salta distante e alto.

No outro telhado, ao lado,

O som assusta

Quem de repente está acordado

Imaginando um assalto.

Mas só queria assaltar a lua.

O gato.

sexta-feira, 5 de março de 2021

OSMOLÓGICA


A orquídea exala quase abrupta,

Nascitura precoce na noite escura

De odor que persiste na pele musga

De tudo o que não existe e rusga

No olfato do jardim de ninguém,

Olorosa catadura que gradua as camadas

De sonho que cataratam meus olhos

De luz soturna. Uma inalação musgo,

Azul-marinha marinando o sonho

Em camadas com a temperança

De ondas vagas, saturnas, aniladas.

Sigilo, silêncio, cismação, vagor,

Plantio de passos compassados

Em um equilíbrio que já não intui

Futuro, presente, passado.

Jardim além, jardim fantasma,

Aterrissa até que na terra haja,

De terreno, pouco ou quase. Ou nada.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

PÓS-CORPO


É muito difícil de encontrar a mulher de três seios. Às vezes, deixa pela casa potinhos de fezes duras e amarronzadas. Quando saio da jaula, persigo. Sua origem se confunde com a condição anômala. Só posso amá-la, ou amá-la antes de compreendê-la. Na realidade, não posso compreendê-la. Gosta de fazer o quarto-prisão da jaula aludir ao imaginário de Chernobyl. Gosto. Vazio, arruinado, com bonecas sexuais defeituosas. Relaciona-se com algumas. Há uma predileta que amamenta junto comigo. Também tenho de amar essa boneca. O corpo humano é obsoleto, a não ser quando anatomicamente desestabilizado ou sintético. Não sei o que será de meu corpo. Tem de ser humilhado, punido, o velho corpo, como a velha korpa. O seio do meio é desequilibrado, intruso perfeitamente anômalo em um corpo imperfeitamente equilibrado. Senti que eu poderia sugerir, com gestos, comê-lo junto com a dona, mas a boneca amada mandou calar qualquer indicação que pudesse caracterizar uma dádiva. Comer um seio anômalo só poderia ser uma dádiva. Nunca serei um monstro. Já tenho de agradecer a amamentação. Minha função no seio da existência é adorar, sofrer e depois morrer. Talvez eu seja comido como escárnio, pela mulher de três seios e pela boneca. Talvez por todas as bonecas. Como música de fundo, a da deep web. Filmarão? Venderão? É provável que não. Ser comido na deep web não é escárnio, deve ser também alguma espécie de dádiva, segundo a boneca, e não receberei nenhuma dádiva post-mortem.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

BARCA


Tudo o que ela tocou, olhou

Foi esterilizado pela noite, pela lua.

Acima a lájea fria,

Embaixo a luz dura.

Crueza do processo, como salvação,

Rendição, alguma enebulada cura.

Se do obumbrado ombro de deus

Fluiu algum frio sombrio de sepultura

É porque ela passou, tocou, olhou

As plantas, as águas, as pedras,

Braceletes, colares, cabelos.

O silêncio nos cílios pesa pouco.

Dessa vez sonolesce

Enquanto escurece. 

As plantas respiram profundamente,

As águas manam seus fios

Junto aos cabelos úmidos,

E os braceletes e colares de ambos

Se misturam, voluteiam

E se enlaçam nas pedras.

O silêncio dos cilícios,

Só o som das águas

E da respiração profunda dela,

Enfunada pela noite:

Embarcação do sonho.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

TÓXICA


Ela prometeu o que Prometeu

Conseguiu e o que não conseguiu,

Hýbris sem nêmesis.

Citou Citera e a Citereia

E prometeu a própria Alétheia,

Se desviando do Léthê.

Após, moderna, prometeu, pediu

Um amor polimonstruoso

Estilo Hugh Hefner + Chernobyl.

Quando? Quando?

Mentiu, mentiu.

Sorriu, disse que era tudo poesia

E que eu fosse pra puta que me pariu.

SEM TÍTULO (A GEOGRAFIA DAS ESTRIAS)


A geografia das estrias

Mapeia viagens raiadas, solares,

Bifurcadas como redes neurais

Com seus padrões e linhas de fuga,

Cavando territórios no terrestre da pele,

No que reste de íntimo para ser exposto.

Peregrinação herética de rastros repleta,

Luminosos, profundos, sombra

Que se revela na luz e embaça:

A baça guia que só guia se procurada,

Guia perdida, guia guiada, perdida junto

Com quem a procura.

Tal geografia, sua textura, é teste

De aventura, geografia e história

Que no corpo encarna e reconta

A origem, tão perdida quanto o aventureiro,

O peregrino, a guia, quem a procura.

No estio, a estriagem dói sua luz,

Pusilânime branco, amarelo, rosa pus

Que gradua dos andarilhos

A esperança que cada um pôs.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O HOMEM NULO: ORIGEM

Passava todo dia

Perto da comic shop

Até chegar à praça

Para se sentar no banco

E permanecer espairecido

Durante trinta minutos.

Após, retornava

Passando pela mesma loja.

Fez o mesmo percurso

Durante dez anos.

Nunca fez nada

De extraordinário.

PARTIDA

Pedaço de seu seio

Em meu estômago.

Trecho de minha pele

Em sua pelugem.

Excerto de seu olho

Em minha boca.

Enxerto de minha orelha

Em seu antebraço.

Nesga de sua vagina

Em meu buço.

Rasgão de minha língua

Em seu ânus.

Gotícula de sua saliva

Em minha lágrima.

Naco de meu cabelo

Em seu púbis.

Película de seu cílio

Em meu dente.

Partes de nossas partes

Em nossas partes,

Até que a partida

Nos desaparte,

Por destino ou capricho,

Contra a vida e a arte.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

SEM TÍTULO (PREENCHEU MEU CORPO)

Preencheu meu corpo

Com hieróglifos menstruais,

Marcas, linguagem

De uma comunicação arcaica

Ainda por ser decidida, criada, lida, falada.

Hieróglifos daqueles simulados,

Como próteses de algum tribalismo

Na imaginação de uma lua escarlatina,

Na noite que pesadelou um feminicídio

Em meu corpo, mas se aqueceu

Na pelagem de um cãozinho sangrento,

Encoleirado, buscando, jocosamente,

Quem decifrasse o indecifrável.

Às vezes ela montava.

Comi ração, pão, um pouco de mato.

Vaguei na noite, aguardando o feitiço,

A dose que a mim caberia, minha vitimização,

Entoei odes à mutilação e ao sacrifício.

Minha pele tatuada de vermelho

Seria exposta na árvore escolhida.

Finalmente, na natureza descansaria.

Mas continuo engatinhando,

Vivendo na tensão e no prazer

Do ritual eterno, que nunca foi,

Nunca é, nunca será.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

POST GHOST

 

Uma diz à outra:

“Você é linda, miga.

Fada sincera,

Fada sensata”.

Reina em sua luz

A quimera da tela,

Fantasma

Que qualquer bruxa

Evoca, contata,

Remida a magia,

Medeia que medeia

Essa era.

Esse fantasma

Se desata e retoma

Os jardins, as florestas,

As ruas, as noites.

Circeia as orlas das noites.

Nelas posta um feitiço.

Ora, oracula um comentário.

Ele alumia,

Diria a voz antiga

Em algum simulacro

Ou podcast perdido.

Alumia, relume,

Em um noturno jogo

De luz e sombra

Como os resquícios

Das tintas

De pintor holandês.