quarta-feira, 30 de março de 2016

SEM TÍTULO (A POLINIZAÇÃO DO MARACUJÁ É ATEIA.)

A polinização do maracujá é ateia.
A teia da aranha é sagrada.
O pôr-do-sol que se põe morno é ateu.
O odor do pão com a cevada é sagrado.
A chuva pusilânime, mas que fecunda, é ateia.
A aleia ao redor do boleeiro é sagrada.
A escarificação das plantas pelas crianças é ateia.
A multiplicação dos peixes na mesa é sagrada.
Os milagres nos corpos são ateus.
Os deuses abismados nos detalhes são sagrados.
As diatribes da sombra refrescante são ateias.
As deturpações das cores na retina são sagradas.
A mística cotidiana é ateia.
Os catadores de lixo na mística cotidiana são sagrados.
A biopolítica animal é ateia.
Os cabelos compridos na cama são sagrados.
O sagrado das emancipações populares é ateu.
O ateísmo das frutas doces é sagrado.

terça-feira, 29 de março de 2016

SEM TÍTULO (UMA ROTA DE LUZ ATINGE A SOMBRA.)

Uma rota de luz atinge a sombra.
A rota dos meus olhos atinge ambas,
Mas ambas não veem.
No escuro um teatro se manifesta,
Começa a se encenar sem atores,
Sem palco, sem público:
Assim parece para os atores em falta,
Para o palco em falta,
Para o público em falta.
Uma língua de luz,
Como se quisesse lamber intestino,
Minimiza uma peça minimalista
E se intestina no escuro.

SEM TÍTULO (O MONSTRO DO SEU CORPO)

O monstro do seu corpo
(Todo corpo tem o monstro)
Convive com o sagrado do seu corpo
(Todo corpo tem o sagrado).
Posso sentir a convivência.
Esse sentimento talvez possa
- Se a convivência sacrílega
For embalada por uma espécie de oração
Que atinja todos os órgãos -
Se chamar amor.

domingo, 27 de março de 2016

JOGO DE DAMAS

Blanche Dubois,
Blanche Dumas.
Duas damas.
Através de um
Jogo de damas,
Uma suplantando
A outra, ocorreria
Uma fusão entre
O teatro de uma
E de outra?
O que tanto Dubois
Aproveitaria do corpo
De Dumas,
E Dumas da mente
De Dubois?
Ou vice-versa?
Qual a metamorfose
Das duas Blanche
(Agora corpo e mente
De ambas,
Só peças blanches?),
Até que só uma se tornem,
E essa seja mais uma
Metamorfose entre outras
Tantas, até que o teatro
Do corpo e da mente finde
Com o fim do jogo de damas?

SEM TÍTULO (UMA DOMINATRIX DE PERNAS MECÂNICAS)

Uma dominatrix de pernas mecânicas
Chicoteia uma pony girl
Para comer as fezes de uma musa
De freakshow com cicatrizes por todo o corpo.
Não há só uma Santíssima Trindade,
Pensa um voyeur sadiano
Que esboça – L’Unique – na mente
A própria morte, e em como será.
Apesar da inadiável referência cristã,
Quer uma morte com sabor clássico:
Baques secos do corpo mutilado por bacantes.
Euripediu opiniões, euripedeu outras.
Toda homenagem às Mênades leu,
Releu, interpretou e reinterpretou,
Todas as referências absorveu,
Até em Qorpo Santo, à luz
Do trágico em Nietzsche
Ou em mais alguma coisa que insiste
Em fazer o voyeur prorrogar
Sua morte e continuar assistindo à cena
Como um mecanismo autodestrutivo
Autorreprodutor, como um filme,
Ou simulacro, que não o deixe se matar,
Ser morto, nem nada sentir tão leve,
Nem nada tão forte, tão ácido;
A ponto do contemporâneo
Devorar tudo, até o clássico.  

SEM TÍTULO (UM PÓ FINO SE DEPOSITA NOS CÍLIOS)

Um pó fino se deposita nos cílios
Como no início em slow motion
De algum filme cult.
É noite, como sempre; ou como nunca.
O pó ciliar contrasta com o entorno
E também com outros contrastes.
Os cílios fazem pose sexy, posam nus,
Banhados em ouro, como arte corporal.
Quando um estranho se aproximou demais,
Os cílios pararam a sessão fotográfica
(Para uma revista invisível)
E tomaram uma postura de krav maga.  

quinta-feira, 17 de março de 2016

SEM TÍTULO (A TAQUIDRAMATURGIA)

A taquidramaturgia
Desse momento descompassado
Corresponde quase pari passu
Às virúleas vertigens
Que os odores alcoólicos
Firulam no ar adensado.
Um ataque lírico
Se presume, idealizado.
Quais os personagens desse drama,
Dentro daquele coração?
Pela respiração a trama
Não é linear, mas em constelação,
Com rupturas, descontinuidades.
Se o palco cair, desmoronar,
Ainda continuam
Quais possibilidades
De alguma peça continuar? 

terça-feira, 15 de março de 2016

CELEBRAÇÃO

Seu deus está morto.
O meu também.
Os jantamos.
O sangue no vinagre
Encharcando a salada.
Você preferiu não me beijar
Com os dentes ainda sujos.
O fio dental retirou
As últimas lascas
Do seu deus.
Nossos deuses
Foram para o esgoto.
Talvez continuem
Sendo, agora, espécies
De deuses do esgoto,
Como o sagrado
Que também se encontra
No fundo do poço.
Celebremos esse dia
Periodicamente.
Não o esqueçamos.

quinta-feira, 10 de março de 2016

SEMINÁRIO

O sol incomoda.
O espanejo um pouco:
Esboroa no ar
A sementícia,
Buscando dispersa
Germinar alguma semântica,
Sondando um espaço propício,
Um terreno, o sulco,
A versura.

quarta-feira, 9 de março de 2016

SEM TÍTULO (ESBATE NO SEU ROSTO)

Esbate no seu rosto
Uma religiosidade dúbia.
O sol ricocheteia leve.
Do lado oposto
A sombra ora uma lua.
Um lado acorda, vive,
O outro sonambula.
No seu corpo sempre habita
Mais de um deus;
Nele mais de uma seita
Se aceita, mais de um ritual
Circunvoluteia enquanto você
Se estende e se oferece,
Ou quando caminha.
Não há síntese alguma
Que você assuma.
É preciso que, oniabrangente,
O adorador
Esteja crente
(Dubitavelmente)
Em toda crença
Que você ressuma.   

terça-feira, 8 de março de 2016

SEM TÍTULO (LUCÍFERO FIATLUX: MANHÃ.)

Lucífero fiatlux: manhã.
O fluxo sanguíneo da tarde
Menstrua como uma imagem
Gasta que se evapora.
Uma aranha tece a noite
Com seus dispersos longos finos
Brilhos nos magros galhos
Das árvores vistos ao longe.
Fiandeira a quem se confia
O irretornável fiatnox.

segunda-feira, 7 de março de 2016

SEM TÍTULO (PERCORRO SEU CORPO.)

Percorro seu corpo.
O seu o meu percorre.
E o discurso ambíguo
Nos torna bífidos
Ao soar o que nas entrelinhas,
Sutil, imperceptil,
E ressoar nos palavrões
- Palavras de baixo calão
Como alto escalão
Do prazer: prazer que,
Entre discurso e prática,
Indica que o amor
É algo grande demais
Para que não esteja
Infiltrado no infinito
Do corpo, essa fronteira
Tão devassada
E tão opaca.

quinta-feira, 3 de março de 2016

SEM TÍTULO (COMO UM COXIM)

Como um coxim
Suave ao toque
- Arquitetura de lírio,
Pomba em delírio
Que apupa
Tudo que não adora
O dórico
Que em sua pele
Mais doura
Que empalidece,
Como um coxim
A coxa
(A parte um pouco
Antes do quadril)
Que fará Dioniso
(Ou qualquer um
Da puta que o pariu)
Matar qualquer coxo
Do pensamento
Que escarrar
No mármore
De Carrara
Que, suave e quente,
O tédio
De qualquer enfado
Enfara.
(E a morte
Será um preço módico).