quinta-feira, 31 de julho de 2014

FULVOR

Rio de fio que grita
Gestos rútilos.
Sua pele rubicunda
Tem desejos rúbidos
E, assim,
Faz rubra ascese,
Furibunda,
De russícoma comoção
Que nos cabelos
Se agita como alguma
Rufícoma hipostasia,
Como rubicápilo rubi
Ou outra rubícoma
Pedra natural:

Cornalina,
Turmalina.

Duas pedras,
Um hipocorístico dístico
Que já distingue
O ríspido uivo
Do cabelo ruivo.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

FLORES

Bailarinas invadem a cidade.
A arte invade a cidade.
A bailarina ali está, agora não mais.
Outra surge, salta, persegue cães
Nas pontas dos pés,
Dança na frente de mendigos.
Seus passos são seduzidos
Por alguma misteriosa música.
São flores nascendo no asfalto.

BLASFÊMIA

Há um salmo
A um palmo
Do meu nariz...
Espirro.

SONHOS

Um toque azul do céu baixo.
Uma carícia rosa de uma recordação próxima, feminina.
O bailado de um pouco de poeira amarelada
No sol que bate em meu peito.
Entro em um supermercado agitado,
Como se todos tivessem cheirado cocaína.
Olho para a Coca-Cola: outra droga, já se sabe.
Mas a bebida negra sempre chamou minha atenção.
Bebida negra: é como beber a noite.
Mas não quero colaborar com marketing.
Não quero ajudar a vender mentira, ilusão.
Já basta a poesia com seu quinhão de sonho,
Ainda que mais saudável. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

DORMIR

O primeiro homem que dormiu
Talvez ao acordar
Tenha pensado em renascimento.
Confundido sonho e realidade
E se imaginado imortal;
Sem saber que sua permanência
Se encontra no fato
De que um dia, como todos,
Para sempre dormiria.

MÍSTICO

San Juan de la Cruz,
Na noite escura em que sua alma
Se crucificou ainda figura
O Amado a que sua via estreita aduz?
Em que alma a noite cognoscível
Ainda, escura, tremeluz?
Penetrar é ainda possível
Na noite que anoitece
Após a noite sensível?
Que nome de glória, imarcescido,
Se apresentará como aquele
Que, clamado, já não será ido?
No nada da pura noite escura,
San Juan de la Cruz,
O Deus que procura
Não poderá ser o falseamento
Do nosso ser corrompido?

segunda-feira, 28 de julho de 2014

SONETO FACEBOOKIANO

Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi

Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi

Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi

Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi mimimi mimimi
Mimimi mimimi geração mimimi

domingo, 27 de julho de 2014

LUTO

O escuro, duro,
Se parece com um muro.
Atravessá-lo
Seria dar murro
Em ponta de faca.
Quando duro, o escuro
Não soçobra sua carcaça,
Faça o que se faça.
Só sobra o alento
(Que às vezes com custo
Se caça)
De que o escuro
Seja a luz em luto,
Que se despirá,
Retomando seu sentido
Como o percurso
De um discurso
Após o bloqueio
De um anacoluto. 

sábado, 26 de julho de 2014

HABITAÇÃO

Sendo a poesia portadora
Da possibilidade de intensa iluminação,
Até que ponto é necessário
Seu desvendamento?
A poesia é a transição para o hemisfério
Do mistério, que é não-lugar.
Não seria a transição a própria iluminação
E o mistério o já estar
Em sua justificativa, habitar
Aquilo que já é no mistério o revelado:
A mística vazia, o vazio iluminado,
A fé deficiente do sagrado? 

SIONISMO

Câmara de gás.
Em Gaza.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

INTERFERÊNCIA

A beleza bizarra
De um seio com silicone mal colocado
Interferiu na imagem
De uma laranja com verrugose.
Passo os dedos na laranja,
Sinto seu odor, a como.
Fiz como se faz uma espécie de ritual.
Toda desconcertante
Interferência de imagem
Tem algo de poético, agressivo e sagrado.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

BODY ART

A garota modificada
Gosta de exibir a língua bifurcada.
Sua boca é uma gruta macabra.
Parte de uma orelha foi nulificada.
Sua arte contemporânea é ela mesma:
Dolorosa e prazerosa inserção
Em seu tempo e em seu espaço.
Sua arte desconsidera
Esta ou aquela parte
De que parte a tradição: seleção.
Sua transgressão está em assumir
Que, fora do corpo, a arte
É só metade ou quase nada.

PLANO DE RESISTÊNCIA

Andar a pé, sempre que possível.
Ser professor.
Ser poeta.
Sempre criar
Possibilidades de convivência.
Ser fiel
Às próprias ideias,
E deixar claro
Quando estiver sendo infiel.
Sempre que necessário,
Rever o plano
De resistência.

CONTO

Um duende da floresta
Raptou uma criança e a engravidou.
Por um momento quase pude ajudar.
Vi o duende correndo perto de mim,
Mas não supus que fosse uma criança
Enrolada no pano que ele carregava.
Conheço a mãe dela.
Reza a lenda que o duende é muito maldoso.
Quer ver a criança morrer
Enquanto gestante.
Certeza que o fará.
Preciso encontrar o maldito duende.

Me confundi:
Quem roubou a criança
Foi uma idosa com neurofibromatose.
Quem a engravidou
Foi um orangotango sem pelos
Que vive ferido.
Engravidou?
O orangotango fica em uma jaula
Na casa da tal senhora Von Recklinghausen.

Cheguei à casa da senhora.
Ela assava um pedaço da própria nádega.
Recusei o jantar, mas aceitei o chá.
Perguntei onde estava a criança.
Ela me respondeu que não sabia.
Perguntei sobre um duende.
Também me respondeu negativamente.
O orangotango,
Vestido com roupa de couro,
Me seguiu até a saída.

Acabou o conto.

O conto não acabou, na verdade.
Procurei mais a criança
E uma estrela acenou
Com seu brilho para mim.
O brilho apontou uma árvore.
Não compreendi a intenção da estrela.
De qualquer modo, encontrei a criança
Brincando com um gafanhoto.
Não estava grávida.
Ninguém fez nada com ela.
Então a devolvi para sua mãe.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

POEMA SINGELO PARA O CÃO VELHO

O cão bebe a própria urina.
Suas orelhas compridas
Ficam molhadas,
Ora quentes, ora geladas.
De manhã costuma
Não beber: mistério.
Talvez o sono seja mais sério.
Não há inseto que sobreviva
Às suas patadas.
Antes de comer,
Precisa de afago.
É vítima de TOC.
Estudo para novos Pavlov.
Faz acupuntura
Para as patas traseiras.
Lambe compulsivamente
As dianteiras.
Espirra engraçado,
Tem um humor escrachado.
Articula o latido
De diversa maneira:
O sino badalando
A sina do farejador,
Que pela sarna negra
Já foi caçado.
Mas vive bem,
Vive bem o cão.
Nunca para de balançar o rabo.

terça-feira, 22 de julho de 2014

REAQUECIDO

O sol rústico, fosco
Colore seus cabelos,
Caídos no encosto
De um móvel
Mais rústico que o sol.
Seus cabelos e o móvel
Me fizeram olhar
Para a janela
E reaquecer
Aquela palavra antiga:
Arrebol.

ELO SUBTERRÂNEO

Na propaganda,
Um pedaço de mulher:
O produto.
No lixão,
Um pedaço de mulher:
O crime.

SEM TÍTULO (UMA ROSA DOS VENTOS)

Uma rosa dos ventos
Venta em meus ouvidos sonolentos.
Uma pétala de rosa
Vem com o vento.
A pétala é rosa.
Imagino que a pétala
Vem me beijar
Como um lábio rosa
Com batom rosa.
O som da rosa dos ventos
Já adquire tons rosados.
Que este som
Embale o sonho
De meus olhos cansados.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

LÍRICO

Um lírio recheado de memória
Massageia a melancolia da pele.
A melancolia cheira hortelã,
E o cheiro é meio frio,
Fresco como bala de hortelã na boca.
O vazio pisca perto das estrelas.
A estrela também é um lírio.
Há uma revoada de lírios
No céu quando aves o clareiam.
Nas imagens que evoco,
Há sempre um toque de deficitária fé,
De fé vazia:
Credere di credere, crer sem crenças
É a poesia.

SEM TÍTULO (ME SENTO PARA QUE A ESCRITURA)

Me sento para que a escritura
Me escreva como quem se senta
Para escrever que a escritura o escreva.
A escritura rascunha meu “eu” biográfico
Como um estranho gráfico de sentimentos.
Eu e meus eus escrevemos
A escritura que me rascunha.
Ela me ia me fazendo me escrever,
Enquanto eu a ia escrevendo
Como tudo que aqui se expunha.

CERIMÔNIA

Em minha boca
Um gomo de sol
Se despetala
Como uma poncã.
Engulo o calor
Na pouca luz.
Com minha mão
Talvez pudesse fingir
Que era uma romã
Em minha boca,
E a pudesse retirar,
A exibindo na pouca luz
Como o símbolo
Por desvendar o indício
De uma realidade
Fecunda
Ainda por vir.

domingo, 20 de julho de 2014

SENHOR DO AMOR

Satã me ama.
Senão por que a visão
No corpo da mulher
Me inflama esta flama
Como a flâmula
De uma poética do olhar?
Satã me chama.
E só posso aceitar
O pedido de quem me adora.
Ele quer que eu
Apresente algum sentimento
Com cheiro de amora.
Satã, como Deus, não existe.
Mas por que insiste
Em me fazer ver
O que antes não via sem poesia?
Seu nome é legião,
E sei que um dia
Também conquistará seu coração.

SEM TÍTULO (SEU CHEIRO AMANHECIDO)

Seu cheiro amanhecido
É a manhã
Dizendo com manha:
“Sou seu amanhã.
Me ame”.

sábado, 19 de julho de 2014

AQUÉM

Todos vamos narrando nossa própria vida.
Vamos enredando um roteiro,
Estabelecendo ligação entre acontecimentos,
Desenvolvendo um personagem: nós.
Viver é também uma performance discursiva.
O silêncio performatiza as entrelinhas
Do discurso, mas quase nunca o momento
Da vertigem em que o vazio
Cria a promessa de acesso
Àquela revelação negada
De que o próprio silêncio pode estar
Aquém do discurso e do simbólico,
Aquém da própria vida;
E de que o silêncio nunca se diz.
O que estou dizendo ou calando
Nada tem a ver, assim, com silêncio. 

UM PROBLEMA DE ORIGEM

Sonhos sonham uma multiplicidade de sonhos.
A sonhadora explora as metamorfoses dos sonhos.
As metamorfoses sonham algum liame profundo,
Indeciso entre a origem do sonho sonhador
Ou o rizoma que é sua própria natureza metamórfica.
O corpo da sonhadora começa novamente
A sonhar seus sonhos de origem:
O sonho mítico, o religioso, o biológico.
As metamorfoses confundem os sonhos de origem
Do corpo, confundem a origem, promovem sonhos
No interior e ao redor deles, próximos e distantes deles.
O corpo se torna múltiplo, devindo sonhos.
O corpo acorda, abobalhado e criativo.
Se espreguiça, se levanta e vai urinar
Aquecendo o que Courbet
Chamava de a origem do mundo. 

OPRESSOR

Quanto de meu verso a subjuga,
Em forma a transforma,
Em linguagem a manipula?
Quando escrevo,
Qual sua realidade,
O que nela muda?
Ou meu verso com desejo
De dominação ainda não
Coagiu sua pele a ser a tinta
Que me impele a continuar
Buscando aprisioná-la?
Você é esquiva a ponto
De julgar que nenhum verso
Soprará em seus cabelos
A tentação de ser em vida imortal?
A quero livre, liberta, libertária,
Mas em nome de prendê-la
Em meu verso assumo sem pejo
Que sou opressor e que irei um dia
Escravizá-la com alguma rima rara. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

MARIANISTA

Nossa Senhora Aparecida,
Nossa Senhora dos Afogados,
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
Nossa Senhora dos Desgraçados,
Nossa Senhora das Putas Exploradas,
Nossa Senhora dos Pobres,
Nossa Senhora do Sangue do Filho Jorrado,
Nossa Senhora do Desespero dos Apaixonados,
Nossa Senhora dos Solitários,
Nossa Senhora dos Embriagados,
Rosa Mística, oh, Rosa Mística,
Mística não há o suficiente
Para livrar seus filhos de seus calvários?
Não, Nossa Senhora das Flores?
Não, Nossa Senhora da Aurora?
Não, Nossa Senhora das Dores?

quinta-feira, 17 de julho de 2014

quarta-feira, 16 de julho de 2014

DE GREGOS E ZUMBIS

O óbolo não esqueça,
Para que o oblívio
Não se espraie
Em aquerôntica margem.
Nossa vida, óbvia ou não,
E sua continuação,
Tem carôntico custo.
Tudo que é ôntico,
E até ontológico,
Tem preço, é pago,
Já muito antes
Do Capitalismo mais tardo.
Pirrônico ou anacreôntico,
O óbolo não esqueça.
Epicureia ou com veia
De Cleópatra,
Na língua o óbolo leve,
Seja a vida longa ou breve.
Ou então retorne
Para perturbar os vivos,
Olhos obnubilados,
Vísceras para todos os lados,
Membros ressequidos,
Para que a tradição
Venha de Homero
E chegue até Romero.