quinta-feira, 27 de junho de 2013

Há estranheza nas coisas.
Há estranheza no homem.
A estranheza é natural, mas não é fácil.
A estranheza é uma conquista
Da impotência,
Da legitimidade do homem.
O passo desviante da rotina
Que o esquecimento guia,
As sílabas desconexas ao palato do sono
Ou mesmo na vigília profunda,
O braço que se ergue
Como se um inimigo fosse surgir imprevisto,
Tudo isto é impotência,
O homem é tudo isto,
Este coágulo de desvio, de estranheza,
O curto-circuito na fiação narrativa,
Na fiação da própria narração.
E nesta filiação à impotência,
Negada pelo próprio homem,
É que tudo o que é humano pode ser o que se é.
Se o próprio ar está com crise asmática
Como posso respirar direito,
Como posso folgar no resfolegar neblinoso?
Na paleta densa da neblina nenhum rasgo luminoso
Prediz qualquer traço numinoso
Ou linha sibilina na face da chacina
Das figuras que se liquefazem
Como orvalho epiléptico
Ou sendo fatiado até desaparecerem.
Na agrura da figura,
Nos seus hiatos readquiro maior fôlego
E minha memória promove um olhar tensivo
Para absorver a neblina.
Recordo mulheres amadas de amor vago
Como agora vago,
Recordo amigos ageografizados,
Recordando-os em sua ausência de onde se encontrar.
Recordo uma recordação que vem do futuro,
Atinge o presente e altera meu passado,
Recordo que existência e sonho
Às vezes caminham ao mesmo lado,
Recordo que é fácil morrer, fácil matar.
Minha memória então se desloca.
Não se anula mas, megalômana,
Consegue absorver a neblina,
Que não se dissipa, mas guia a memória.
A memória absorveu sua guia;
Revelou, na verdade, que sua guia é sua guia,
Desvirginou sua essência virgília
Em sua semiconsciente vigília.
As mulheres vão juntas, os amigos,
O sonho, a existência...
A neblina quer se expandir
Até abarcar o mundo e, após, o universo.
Mas um raio mais intenso de sol,
Que não foi recordado,
Acordou uma fatia no fantasma colossal
Que buscava sua própria narrativa universal
E que um dia foi neblina,
Um dia foi memória,
Mulheres, homens, amigos, desconhecidos, sonho, existência...
Que um dia, imprevisto em qualquer mensuração temporal,
Eu, enfim, fui. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A SOMBRA

Pudesse perseguir uma mulher
Como se persegue um astro,
E perder o caminho
Quase sem deixar rastro.
Porém quando a encontrasse
No mais ocasional acaso
Só sentir distante
Que o corpo é fundo
E que dele talvez não se escape
A não ser com homicídio.
Mas sentir que não existe
Real comunicação entre corpos
Apesar ou por causa da profundidade de um corpo
Ser maior que ele mesmo.
Que eu pudesse sentir isto
E continuar andando a esmo
Cismado com outras coisas ainda.
Por exemplo: um ataque marcial
De formigas em um banco
Ativa uma abstinência insuspeita.
A luz do carro arruivesse
A carreira de formigas no meu braço
(Carapaça satânica)
E agora, por algum motivo não esclarecido,
Fica evidente que a abstinência
É de sexo grupal.
É o corpo ainda, afinal.
Mas sexo grupal de uma espécie
Ainda não classificada, mensurada:
Um jogo de luzes
Nas linhas bifurcadas ou múltiplas
De vôos de hipotéticas aves?
Formigas e sexo grupal,
Ou algum problema social
Grave picando meu braço:
O vermelho do farol do carro
Não desbotou...
Volto a andar e então
Minha caminhada atinge uma consciência
De realidade:
O fantasma do desejo é a sombra
Que caminha em abismo
Com sua sombra única e tão vasta,
Sobrecarregada e coletiva
Como a sombra da noite que tudo encobre.
Meu braço começa, enfim, a arder.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O PRAZER

Imagino uma espécie de carícia
Em suas papilas gustativas
Incendiadas pela fome.
Esboço gestos de água
Relacionando meus dedos
Com minha própria saliva
Enquanto degusta um doce com creme.
Um folículo de luz treme
Na gota da língua
Com o mesmo rumor de queda
Que o sol investe na gota da folha.
O odor do cabelo será o sabor do doce
E vice-versa no prazer
Microscópico de análises clínicas
Que amplio nas pequenas coisas vastas
Ou na ilusão delas.
Quando o doce desce na garganta
Você fica inteira doce
E nem há tanto sentimento nisto:
Você fica doce,
Seu sabor deve mudar no olfato,
Seu odor deve acentuar no palato
Um apelo adocicado que começou
No labirinto meio ordenado do cabelo.
Doce, docilidade no andar pétalo e cremoso,
Creme de rosas sujando o chão
E pedindo para ser limpo
Humilde e docilmente.
Direciona à língua com o dedo
A réstia no canto da boca
E sorri com o próprio prazer
Um sorriso doce e malicioso
Como se estivesse guardando no corpo
O segredo da emancipação maior
Da humanidade.  

terça-feira, 11 de junho de 2013

Um eu em rio jorrando, devindo,
Devendo risos no rio de sangue das veias,
Devindo, indo e revindo
Anímico, elânico, vital, no rio de sangue,
De água, sangue, diversas substâncias,
Procurando seus órgãos pelo caminho,
Claro e escuro, adulto e infantil,
Adúltero da própria identidade,
Comungado com uma parentésica ipseidade,
Na sombra do parêntesis, parente
De outros eus, eutanásicos e reviventes,
Conectado à sombra da lua desejosa de eclipse,
Vivendo em elipse, e enlaçado
Com um pássaro em vermelho vôo oblíquo,
Com o tecido da teia da aranha,
Com a promiscuidade da paleta do pavão
Sem o ego dele, mas por isto mais egótico,
O múltiplo, o que devém paradoxo.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A feiura ainda se recobre
Sobre os próprios braços enormes.
Monstra em alguma recantada montra
Rude, pedregosa e não se mostra.
Não conhecemos a feiura,
Mas somente a beleza rebaixada
Ou rebaixadamente glorificada
Pelos artistas ou pela mídia.
A feiura é Midas ao inverso,
Não cabe em verso;
A feiura não cabe...
Talvez nunca conheçamos,
Talvez não estejamos preparados,
Preocupados demais
Com a beleza de nossa própria feiura,
Com o sublime de nosso próprio grotesco.
A feiura é fúria magoada,
Não se extrai dela o cômico
Nem o erótico.
É fúria por si só e sem fim,
É mágoa somente mágoa interminável,
É só destruição, só o abominável.
Não conheço a feiura,
Por isto estes versos se puderam fazer. 
Bolinado pela sombra córvica de Jesus
Lá estou novamente dependurado
Na cruz – corvéia da alma
De todo digno bebedor de pus.
Mas já beberico o fel como se fosse mel
- O clichê é um ativador erótico,
Pois Madalena já estreou
Seu itinerante serviço de massagens
E só desejo um happy end:
Que todos sejam perdoados,
Pois não sabem o que perderam.

domingo, 9 de junho de 2013

Em um olhar procuro genealogias de um átimo,
Mesmo que com certo vagar; genealogias,
Algo como ficções de origem, origens monocausais,
Causas com ou sem efeito, a memória
Enquanto depósito da História e da imaginação.
O toque é outro estopim, outro dispêndio
E recompêndio de energia, de fluxos,
Experiências temporais e mesmo refluxos na garganta
Quando arranha como uma aranha
A instabilidade flertiva de um olhar pteridófito
(Avenca, sugeriria um apaixonado
Em estado de surrealidade dejavendo
Talvez um acasualmente objetivo ornamento digno
De se fotografar).
O amor é um aberro em crise de contemplação
Mendigando ruas como aquele monstro
Presenciado naqueles olhos infantis adulterizados
Por um sorriso meio mecânico ao lado da mãe.
Gosto de andar pelas ruas
E poder, de flâneur a flanelinha, me iludir
De que sempre ao final adquiro conhecimento vasto,
De que sou História, tempo, corpo e espírito revelados,
Uma espécie de queda e uma espécie de glória.

sábado, 8 de junho de 2013

Orfeu, então faíscam ouro e fogo
No olho cansado de Morfeu
Que amofina na morfina
Do sono sempre desperto?
Morfeu dissoluto em analogias noturnas
Só quer morrer na areia de seu eu
Uma noite que seja
E que o mundo permaneça
Desperto na lira do vento
Como um animal
Em uma floresta desarvorada
Devorada por um sono dormido distante
Em um deserto particular.
Talvez este sono coletivo
Fosse, assim, somente por uma noite, eterna,
Um único lar. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

TRANSFIGURAÇÃO

O amor de seu deus morto
É o caos penetrando meu corpo,
Aumentando meus poros,
Desregulando a localização de meus órgãos
E seus funcionamentos.
Estou cheio de amor,
Seu deus morto é visceral
E o caos refina seu ódio vertiginoso
Na minha aorta.
O deus morto vive em mim,
Vive no caos
E na violenta criatividade da vida.
Ressuscitei seu deus,
Ressuscitei o amor, fui ressuscitado...
Vamos orar, pois estou excitado
Com esta imanente metafísica.
Que seja: vinho, vinho e mais vinho
Venha banhar esta profunda mímica.  

DISCIPLINA E BRIGA DE CASAL

Saúda
Sawadee Krap
Cada vez
Que o som é “crack!”,
Cada osso,
Mesmo em receio de SOS,
Reverbera “OSS”
No meio
Da luta de muay thai:
Está aí
O high kick - zás -,
Aqui está a defesa.
Kob Kun Krap!
Kob Kun Kaa!
Acabou o treino.
Agora foge, vai
Que ela está atrás:
Zás-trás! 

domingo, 2 de junho de 2013

, sempre o prazer e o sofrimento
de viver a sensação inóspita,
de um pai apaixonado pela filha,
criando a filha para se apaixonar mais profundamente,
uma filha parecida com a mãe morta,
a filha cadáver vivendo na violência
do coração paterno, terrivelmente terno,
mas afastada do coração
a filha cadáver vicejando na mão
do maconheiro de sábado à noite
e pensando em como o pai gostaria de estar ali,
nem que fosse junto com o maconheiro,
no meio da fumaça do cigarro,
nem que fosse vendo a filha sentir prazer
com o maconheiro, acenando que ela sabe,
que ela saberia sentir com ele,
e que ele seria homem para ela,
e até maconha ele fumaria,
e até cheirar ele cheiraria,
e depois reeducaria o bom caminho,
após a cama e o último carinho,
viver a sensação inóspita
da paixão pela irmã, a grande irmã
linda como a paixão de um pai incestuoso
reeducando a filha, a grande irmã
mais velha, meio sádica e bobalegre
a que não se negue uma pitada de lesbianismo
espocando na esquisitice de uma pinta sexy,
a irmã casada, caçada pela memória
nas noites onde a solidão deixou a solidão sozinha,
sempre o prazer e o sofrimento
de viver a sensação inóspita
de qualquer negação extrema,
deuses mortos brotando ausentes nos arredores das cidades
contando suas crepuscularmente metafísicas dores,
o caminho tortuoso autofecundante de qualquer idealidade,
o amor comprado com foros de verdade
e flores fake fartas de postura fria sem pedir água,
o abismo sutil entre o discurso e um espaço vazio,