domingo, 31 de março de 2013


Sob a carniça do deus morto
Armo minha morada:
O resto da pele e os ossos.
Assim passo meu dias
Meditando e esperando
Algum amor que deguste
Tutano de deuses mortos.
Somente às vezes saio.
Um deus morto costuma
Cheirar mal às vezes;
E saio um pouco.
Sou uma espécie de monge.
Sou um homem sagrado
E confesso: conseguiria amar.

terça-feira, 26 de março de 2013


Seu deus é morto ou afastado.
O nume é sem nome
Mas porque o nome já não garante o nume.
É que o nume já não é mais lume
E não mais te assume.
Sempre foi oculto,
Mas agora o divino é o signo do luto.
O divino é a luta por este signo.
O que você vive
A não ser a presença desta ausência
Ou afastamento,
A não ser este intervalo vazio,
Incomunicante,
Do halo humano e do outro halo?
A não ser saber que há afastamento
E que ele
- Presença da ausência,
É o próprio intervalo? 

domingo, 24 de março de 2013


Amar, ter conta em banco,
Ter um filho, cometer uma violência
São a mesma coisa.
É prazer e dor que a morte
Subsume e consome.
Daqui não se leva nada,
Como dizem.
Ser filantropo ou canibal de criança
São a mesma insuficiência inata.
A morte não tem moralidade
E tudo é diluído
Em sua entranha putrefata.
A morte não tem moralidade,
Mas o que a morte tem a ver conosco?
Esta morte incomensurável, incontrolável?
Esta morte que o suicida tenta prever
E ritualizar?
A ausência moral do incomensurável
Só tem a ver com a ausência moral do incomensurável.
Nossa morte é a que se morre em vida,
É o caos como fator do equilíbrio de nossa vida.
O caos que assumimos,
Que deixamos nos transpassar.
A morte em vida.
Aquela que controlo agora
Na ritualidade da escritura.
E esta morte é o que há de mais moral.

sexta-feira, 22 de março de 2013

A PIRA


Há fogo na boca, no hálito,
Há algo de dragão no homem,
No ladrão de fogo
Que se tornou o homem;
O homem que é a criação criadora
Que se cria roubando,
Roubando para si o que para si exige.
Há fogo na palavra,
Queima o ar, faz afogar
No fogo que fica no ar,
Nas cinzas quentes com odor de alguma coisa
Que permanece (e ainda aquece).
Há sempre fogo no ar, no corpo.
Se sente o corpo pelo fogo e pela água.
A boca é o reino de água e fogo,
E não só a boca.
O desejo é fogo, a fé é fogo.
O mundo é um incêndio
E tem a água como aliada.
É a água que acende e evidencia o poder do fogo.
O homem lê e a página queima.
Queimará sempre que se leia.
Ler é a consagração de um instante de fogo
Que revela ao homem que ao seu redor é o fogo.
Desejo (aqui o grande fogo) ao homem
A queimadura do beijo,
A prisão de fogo do abraço
E o fogo de fé de algumas palavras...
E também o fogo de todo sofrimento digno de sofrer.
O homem precisa queimar.

Desta vez a presença de uma noite me aniquila.
Uma presença sem origem nem finalidade.
Uma noite que é uma só imagem,
E digo imagem por não haver outro nome,
Na realidade.
Esta noite seduz, é um labirinto
De viajante órfico sem lira
Que organize o fascínio do caminho,
Este fascínio do medo.
Tudo o que a sombra euridisse
Não vibrou fora da sombra
- Como um amálgama de sombra
Indissoluvelmente noite.
Uma outra voz, um outro lado
Me colocaram no centro desta noite
Sem centro, pois o centro é a própria noite.
Uma outra voz que não é voz,
É vibração do outro lado.
É tudo noite, a bem da verdade.
Como sair desta noite
Até encontrar uma noite mais superficial?
Estou fascinado e com medo.
Quero a superfície,
Pois a autenticidade desta noite
Pesa em demasia nos olhos,
No fascínio e no medo.
A autenticidade, esta força provinda da fraqueza,
Poder sem poder da fragilidade.
Onde termina, onde deixa de ser?
Noite, nostálgica noite reconhecível,
Não estou vivo e quero ainda morrer.
Quero observar uma estrela, uma rua deambulável,
Um pub onde sentar e comer,
Mas esta noite é vasta demais,
Maior que eu, interior e subtraída de mim.
Esta noite é a abertura do que não tem fim.
Digo tudo através do irreconhecimento.
Palavras aqui são indômitas ou mudas.
Não me compreender e não compreender a incompreensão
É a possibilidade, mas a possibilidade
Existe enquanto possível
Somente na noite reconhecível.
Quero a noite de volta,
A noite concebível...
O que falo calo:
A solidão desta noite só cabe no indizível.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Um moca
Com um desenho barroco
Na espuma.
Uma moça
Que na grotta da boca
Proporciona
Que a glote glose um mote:
Um barraco
Por causa do barroco.
“Para refrescar
Os gestos italianos
Uma soda... italiana.
Não há problema:
Nenhum desenho
Provoca edema”.
Só um quiprocó rococó
(Geralmente a definição
De quiprocó se confunde
Com um quiprocó).
O barraco foi forte:
Nenhum edema
Mas quase um autoenema.
“Para você, ó: cocoricó”!
Eu, que sou feio, sólido, leal,*
Sentado à mesa do café
(Que não é devasso),
Tive tenções de oferecer-te o braço.*
Mas logo desisti,
Pois meu moca estava aí.
Queria ver meu desenho:
Ah, como pedi!
- Satã levantando o cenho.

* Verso do poema “A Débil”, de Cesário Verde.

sábado, 2 de março de 2013

LENDA


A spooky kid
Virou groupie de uma banda
De gothic rock.
Grosso modo, engravidou
De modo grosso,
Apesar de dizer
Que nem toda groupie faz grupal.
Gangbang de banda
Requer DNA.
Ácido desoxirribonucleico
Não era seu ácido predileto,
Mas passou a disputar
A preferência.
Depois de feita a biografia:
Entrevista em revista.
Disse que foi feminista
Em sua época.
A maioria
Não engoliu a história.
Biografia triste:
Roqueira
Sem a glória da memória.
Um empresário
Disse que groupie era coisa
Do passado
E que a pornografia
Dava cabo do que se pedia:
HPV, herpes e tarja preta,
Logo nada que desconhecia.
Virou lenda
Da sarjeta glamourosa.
Se casou com um rockstar
(De outra banda
De gothic rock)
E o respeito apareceu.
Mas o rockstar virou crente
E disse que hoje tudo era diferente.
A groupie voltou
Para a sarjeta sem glamour.
Mandaram ir pastar
E virou pastora.
Montou uma banda
(De white metal)
E lê em grupo na escola
Onde estuda a filha.
Escreveu uma biografia...
Glória de Deus e da História.
O pai da filha
Morreu de overdose.
Mas não tinha mais rancor
Perante o Senhor.
Orou por ele, orou por nós.
Orou pela fé neste mundo atroz.

sexta-feira, 1 de março de 2013

PEQUENA PEÇA GÓTICA

Uma aranha anoréxica,
Arabesquenta –
Caricatura no início timburtônica
Mas que depois deu medo –
Achou que era
Uma bailarina de caixinha.
Uma sensação quase soropositiva
Percorreu a vida venosa
Do meu veneno.
Depois, positiva como soro
A sensação recuperou
Melhor enleio.
A aranha meneou
Uma média exata
De movimentos
E morreu, anoréxica e negra,
Com pose de um cisne negro.
Helena Bonham Carter –
Que surgiu ao me lado
Com a maquiagem borrada –
Bateu palmas
Mas se entediou com o enredo.